O diálogo à esquerda morreu, paz à sua alma. Pela primeira vez desde o início da geringonça, os partidos à esquerda do PS não foram chamados para a ronda de reuniões orçamentais e assumem que as negociações sobre Orçamento ficarão mesmo limitadas aos plenários da Assembleia da República, longe das salas em que se costumavam reunir em privado com o Governo. Nada que os surpreenda: para PCP e Bloco de Esquerda, este é mais um sinal do perfil da nova maioria absoluta de António Costa — e um sinal para fazerem oposição mais dura (e na rua).
O facto de o Governo contar agora com maioria absoluta não explica, por si só, a ausência dos partidos de esquerda nas reuniões. Isto porque, na quarta-feira, houve quem se reunisse com o ministro das Finanças, Fernando Medina, e a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes. Foi o caso do Livre e do PAN — encontros mais previsíveis, uma vez que ambos os partidos já tinham mostrado disponibilidade para dialogar com o Governo — mas também dos deputados do PSD/Madeira e até, mais surpreendentemente, da Iniciativa Liberal.
Mesmo depois do fim formal da geringonça, em 2019, o Governo continuou a convidar a esquerda para as rondas de reuniões antes e durante o processo orçamental. Agora, só quatro partidos — excetuando o PAN, nenhum deles antigo aliado do Executivo — entram nessas contas. Porquê estas escolhas? Foi quem “mostrou disponibilidade negocial para debater o Orçamento do Estado para 2022″, justificou o Executivo.
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Mas se para a esquerda isto não passa de um número político, uma coisa é certa: a atitude do Governo “fica registada”. Isso mesmo atirou o deputado comunista Bruno Dias, no programa Semáforo Político, da Rádio Observador, depois de confirmar que o partido “nem sequer foi contactado pelo Governo” para confirmar se tinha ou não disponibilidade para participar nas reuniões.
“Estávamos mesmo a ver. A partir do momento em que o PS passou a ficar com a faca e o queijo na mão, mostrou ao que vinha”, frisa o deputado. E mesmo que o PCP não “faça questão” de entrar no “cerimonial” dos encontros orçamentais, esteve atento aos “anúncios e notícias relativos a essas reuniões” e percebeu que o PS já não alimenta qualquer expectativa quanto a plataformas de entendimento com a esquerda.
A opção do Governo, acusa agora o PCP, é de criar um momento “público e mediático” para promover a ideia de diálogo num processo que na verdade “já tem destino traçado”, uma vez que o PS não precisa dos votos dos outros partidos para fazer o documento passar. Até porque o Orçamento atualmente em discussão é, na verdade, muito semelhante ao que foi apresentado em outubro e que os partidos à esquerda rejeitaram.
E se esse documento até inclui propostas que o PCP tinha apresentado na altura — do aumento das pensões até 1108 euros ao alargamento da gratuitidade das creches — o que o partido argumenta agora é que, com o aumento da inflação e consequente poder de compra, até as suas medidas estão desatualizadas (a nova proposta para as pensões, por exemplo, engorda o aumento das pensões de dez para vinte euros).
Confiar nas massas. E chamá-las à rua
Na quarta-feira, o PCP resolveu arranjar outra forma de expressar o seu descontentamento: à hora das reuniões com os outros partidos, marcou uma conferência de imprensa com a líder parlamentar, Paula Santos, para apresentar publicamente algumas propostas na área da Saúde (voltando a um dos pontos da discórdia, a exclusividade dos médicos, e a garantia de médicos de família para toda a população), escola pública e Cultura. Em resposta aos jornalistas, a comunista bateu na mesma tecla: o PCP “não estranha” que não haja reuniões com o partido “nas atuais circunstâncias”, mas considera a opção “reveladora da recusa em avançar com soluções adiantadas pelo PCP”.
De resto, a luta também se faz na rua. Com menos deputados, o partido vira-se para as massas: no dia anterior tinha-se juntado a protestos por todo o país contra “o aumento do custo de vida, pelo aumento real das reformas e salários, pelo reforço da Segurança Social e por melhores serviços públicos de saúde”.
E, na semana passada, o dirigente João Frazão deixava o discurso bem definido para os próximos tempos, num texto publicado no jornal do Avante!: “Com o custo de vida a aumentar até aos limites do insustentável, o papel do Partido, de cada um dos seus militantes, é mobilizar as populações para o combate à especulação, que está evidente há vários meses. Com a degradação do poder de compra dos trabalhadores, a tarefa dos comunistas é organizá-los para a luta pelo aumento geral dos salários, pelos horários e pelas condições de trabalho”. Resumindo: o caminho já não passa por negociar medidas no Parlamento, mas antes por “confiar na energia criadora das massas, na sua força, e no que ela vai trazer de positivo para o reforço do partido”.
Reuniões sem poder? Não, obrigado
No caso do Bloco de Esquerda, também não há grande surpresa quanto ao facto de o partido não ter sido incluído na ronda de negociações orçamentais. De resto, em conversa com várias fontes bloquistas, o Observador ouviu a mesma reação: “Reuniões? Agora é maioria absoluta…”.
No Bloco, o entendimento é que os encontros que o PS agora mantém, mas não com os parceiros de antes, servem para pouco mais do que fazer um número político — e não negociar verdadeiramente. O raciocínio é simples: as reuniões justificam-se quando as duas partes têm poder negocial e podem usá-lo. Perante um partido com maioria absoluta, o poder do interlocutor fica reduzido a mínimos, ou praticamente à boa vontade do Executivo — e o partido também não estava interessado em colocar-se nessa posição.
De resto, entre os bloquistas ironiza-se com a oportunidade que o Governo deu aos partidos para marcarem a agenda do dia, mas pouco mais: as negociações reais só existiam enquanto o Executivo precisava de mais votos. Agora, o PS chega — e o Bloco garante que não quer entrar em negociações de faz de conta.
A aposta do partido é, em grande parte, semelhante à do PCP: os próximos meses podem trazer convulsão social, graças ao aumento dos preços e aos efeitos de uma inflação que o Governo insiste não passar de um fenómeno transitório, apesar da imprevisibilidade da guerra na Ucrânia. É esse o ponto em que o Bloco se irá centrar, na discussão (agora pública) do Orçamento e na rua, tentando tomar para si o papel de agregador das queixas de quem vive com baixos salários e agora vê o poder de compra ainda mais diminuído. Longe vão os tempos em que as três partes se sentavam durante longas horas a negociar Orçamentos ponto por ponto, para no fim apresentarem medidas comuns. Agora é cada um por si.