António Costa esteve esta quarta-feira na Assembleia da República para encerrar o segundo ano de trabalhos parlamentares da legislatura — um debate que se traduziu, ao mesmo tempo, no segundo debate sobre o Estado da Nação da pandemia. Sem o habitual frente-a-frente com o líder da oposição (Rio esteve ausente devido à morte de um familiar), o primeiro-ministro prestou contas aos partidos e apresentou o roteiro de ação que o Governo vai seguir para responder à crise económica e social provocada pela pandemia.

PSD pede bilhete “só de ida” para Eduardo Cabrita

Costa foi confrontado com a força (ou debilidade, dependendo do ponto de vista) do Serviço Nacional de Saúde, após um ano e meio de pandemia; teve de ir a jogo para falar sobre os apoios que o Governo (não) garantiu às empresas, numa economia debilitada pelo impacto das medidas de controlo sanitário; e ainda escutou exigências sobre a forma como o Governo deve ponderar o destino de cada cêntimo que chegará a Portugal dentro do pacote de ajuda financeira da União Europeia — a tal bazuca que o primeiro-ministro diz ser “de montante superior ao Plano Marshall”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao longo de quatro horas e meia, o Observador esteve a acompanhar o debate sobre o Estado da Nação e analisa aqui as declarações que marcaram o encerramento da sessão legislativa.

“Temos hoje menos portugueses cobertos com médico de família do que tínhamos em 2015”

Na primeira intervenção do PSD, dedicada ao SNS, o líder parlamentar social-democrata, Adão Silva, apontou que há neste momento “menos portugueses cobertos com médico de família do que tínhamos em 2015”.

Ora, de acordo com os dados disponíveis no Portal da Transparência do SNS, em junho deste ano havia 1.057.839 utentes sem médico de família atribuído do Serviço Nacional de Saúde (SNS), correspondentes a cerca de 10% do total de inscritos (10.390.632). Destes, apenas 31.581 não tinham médico de família por opção.

Mas o número de portugueses sem médico de família atribuído era menor em 2015? No final do primeiro semestre de 2015, ou seja, no final de junho, havia 1.280.425 utentes sem médico de família segundo um relatório de auditoria do Tribunal de Contas. Dos quase 1,3 milhões sem médico de família, 28.880 utentes não tinham médico de família atribuído por opção.

Medidas adotadas pelo anterior Governo não deram médico de família a mais utentes, diz Tribunal

Assim, é fácil constatar que a afirmação de Adão Silva está incorreta. Não é verdade que haja “menos portugueses cobertos com médico de família”, em comparação com o ano de 2015. Com 10.281.362 utentes inscritos em 2015, 1.280.425 não tinha médico de família atribuído, ou seja, 12,43% do total de inscritos no SNS. Agora, no final do primeiro semestre de 2021, são 10.390.632 os inscritos e 1.057.839, ou seja, 10,18% do total não tem médico de família. Uma diminuição de cerca de 2 pontos percentuais entre 2015 e 2021.

ERRADO

“Temos hoje 2 milhões de pessoas em Portugal a viver em pobreza energética”

A líder do PAN, Inês Sousa Real, dedicou a primeira intervenção do partido no debate do Estado da Nação às questões climáticas. Na intervenção, Sousa Real frisou que o país tem “dois milhões de pessoas a viver em pobreza energética”.

Os dados que sustentam esse argumento constam de um estudo divulgado em janeiro deste ano, numa altura em que uma massa de ar frio fez disparar os consumos energéticos para máximos de dez anos, e aponta que “quase dois milhões de pessoas dizem passar frio em casa”.

Quase dois milhões dizem passar frio em casa. Quanto custa acabar com a pobreza energética em Portugal?

A pobreza energética é a incapacidade em manter a casa quente no inverno ou arrefecida no verão. E o Governo incluiu no PRR 620 milhões para tornar os edifícios mais eficientes a nível energético. Mas o valor fica aquém do necessário e as medidas que até agora têm sido tomadas são “grosseiramente insuficientes”, defende um estudo realizado pela Universidade Nova de Lisboa em colaboração com o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) e a Rede Douro Vivo.

Os dados mais recentes do Eurostat, referentes a 2019, mostram que Portugal é o quarto país da UE onde os cidadãos mais dizem não serem capazes de manter as casas quentes (quase dois milhões de pessoas — 18,9%), apenas atrás da Bulgária (30,1%), Lituânia (26,7%) e Chipre (21%). Nas contas feitas por João Pedro Gouveia e pela sua equipa — que há 12 anos estuda o fenómeno da pobreza energética— , com base em diversos indicadores, estima-se que entre 1,77 e 3,67 milhões de portugueses sejam vulneráveis à pobreza energética.

CERTO

“[António Costa devia pedir desculpa] pelas 60% de empresas que faliram ao longo dos últimos três meses”

André Ventura, deputado do Chega, insistiu no debate que António Costa devia pedir desculpa aos portugueses pela sua governação. E referiu, em particular, que teria havido “60% de empresas que faliram ao longo dos últimos três meses”. Elaborou, pouco depois, dizendo que “60% não conseguiram obter os apoios que o seu ministro da Economia prometeu que iam ter. E diz o relatório [que foi devido a] excesso de burocracia”.

O deputado não especificou de que “relatório” estava a falar, perante o olhar franzido de António Costa, mas o Observador questionou a assessoria de imprensa sobre qual era o documento em causa. Tratava-se, afinal, do último inquérito da CIP que, em parceria com o ISCTE, publica periodicamente o seu barómetro “Sinais Vitais”, com base em inquéritos às empresas.

Ora, na última edição, de junho, numa amostra de 397 empresas (num universo de 150 mil), revelou-se que 34% das empresas inquiridas se candidataram a apoios. Ou seja, cerca de uma em cada três empresas consultadas pediram ajuda ao Estado para lidar com os impactos da crise económica. Desse universo, 66% disseram que o seu pedido foi aprovado, 2% foram rejeitados e 32% aguardavam resposta (no início de junho).

Quando se perguntou às empresas que não se candidataram (66% do total das inquiridas), mais de um terço disse que não necessitavam de apoios e 44% disseram que não reuniam as condições necessárias de elegibilidade — por exemplo, por não terem tido uma suficiente quebra na faturação.

Mas de onde vêm os 60% citados por André Ventura? O inquérito da CIP perguntou às empresas — a todas, tenham ou não requerido os apoios — se achavam o acesso demasiado burocrático. E, aí, 62% dos empresários ou gestores de topo responderam que são “burocráticos” ou “muito burocráticos”.

Isso não quer dizer, de modo algum, que 60% ou 62% das empresas tenham falido porque o excesso de burocracia lhe vedou o acesso aos apoios. Foi apenas uma apreciação de todos os empresários inquiridos (menos de 400) sobre os mecanismos de apoio existentes – e as respostas vieram de todos: daqueles que precisaram e daqueles que não precisaram.

Sobre este ponto, refira-se ainda que o número de falências em Portugal nos primeiros seis meses deste ano foi menor do que em igual período de 2020. Em 2021 (até junho) houve 5.882 encerramentos, o que compara com 6.035 de 2020 (até junho). Quanto a insolvências, houve mais em 2020 do que em 2021 (1.177 contra 1.044 nos mesmos períodos de análise).

Portanto, André Ventura baseou-se num inquérito a uma amostra inferior a 400 empresários que, quer tenham ou não necessitado de apoios, responderam na sua maioria que, de facto, consideram as candidaturas demasiado burocráticas. Mas esse indicador não tem qualquer ligação com as empresas que estão a falir no país (ou com a causa dessas falências).

ERRADO

“Portugal foi, segundo a OCDE, o país com maior percentagem de empresas por apoiar e o segundo pior no esforço orçamental para esse apoio”

Numa das intervenções pelos sociais-democratas, o líder da bancada parlamentar do PSD afirmou que “Portugal foi, segundo a OCDE, o país com maior percentagem de empresas por apoiar e o segundo pior no esforço orçamental para esse apoio.”

Mas há uma ressalva que Adão Silva não fez: é que estes números referem-se apenas aos países da OCDE que usam o euro como moeda.

Em relação ao facto de ser o país com maior percentagem de empresas por apoiar, com 25,5% de PME sem qualquer ajuda — nem direta, nem indireta —, Portugal ficou à frente de países como o México, Colômbia, Turquia e Chile, que não usam o euro.

Uma em cada quatro PME não tiveram apoios na pandemia

Os dados são do mais recente relatório da OCDE, num estudo que analisa o impacto da crise, a resposta dos governos e os fatores estruturais para a recuperação das PME para os 37 países da OCDE — onde se inclui Portugal, um dos países com menor esforço revelado e que deixou mais PME de fora dos apoios.

PRATICAMENTE CERTO