[Artigo originalmente publicado a 9 de abril de 2019 e republicado esta terça-feira, 7 de maio de 2019, a propósito da alegada captura de um piloto português na Líbia.]

Foi numa guerra entre o governo líbio e um antigo aliado de Kadhafi que um piloto português, que estaria a combater na Líbia como mercenário, terá sido capturado, garantem os alegados captores. As versões são, para já, contraditórias, mas o autodenominado Exército Nacional garante que o homem, que se apresentou num vídeo difundido pelos captores como “Jimmy Reis, de 29 anos”, trabalharia para para as forças do governo. Esta terça-feira, o avião que pilotava terá sido abatido pelo autodenominado Exército Nacional da Líbia — que apoia o general Khalifa Haftar — o homem que quer tomar o poder.

Governo português não confirma nacionalidade de piloto alegadamente capturado na Líbia

O incidente, cujos contornos exatos ainda não foram revelados, é, o episódio mais recente de um conflito que tem crescido nos últimos meses. Oito anos depois da Primavera Árabe, que levou à queda do regime de Muammar Kadhafi, o país eclodiu numa guerra civil que começou em fevereiro de 2011 e acabou em outubro desse ano, já depois da morte do coronel. Desde aí, a Líbia tem sido gerida por várias fações e tentativas de democratização supervisionadas pela ONU.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Hoje está novamente à beira de uma guerra civil, o que significa que podem ter fracassado vários anos de esforços diplomáticos para unir o país e reconciliar fações armadas e políticas rivais. O motivo: uma iniciativa armada liderada por Khalifa Haftar, general que trabalhou com Kadhafi, e que quer agora liderar o país. A zona leste já é dele e está agora a menos de 20 quilómetros da capital, Tripoli. Com quatro perguntas e respostas, saiba o que está em causa numa situação que pode — mais uma vez — mudar a segurança do Mediterrâneo, do Médio Oriente e do Norte de África.

ONU. Cerca de 2.800 pessoas fugiram nos últimos dias de Tripoli e arredores

O que se passa com a Líbia e porque está de novo debaixo do foco?

Gerida por várias fações, a Líbia enfrenta agora um novo problema: há três meses, Khalifa Haftar, um general renegado dos tempos de Kadaffi, começou uma série de ofensivas militares no leste da Líbia, local onde exercia grande domínio. Para além dessa zona, Haftar detém igualmente um importante campo petrolífero no sul, fortalecendo os seus meios. Este impulso foi visto pelo governo líbio como um possível indicador da vontade de Haftar de alastrar o seu poder a outras cidades. Neste momento, o general e as suas tropas — Haftar lidera o autodenominado Exército Nacional da Líbia — já estão a 20 quilómetros da capital Tripoli, sendo esperada uma ofensiva à cidade.

Mas quem é, afinal, Khalifa Haftar?

Khalifa Haftar é um general que pertenceu ao regime de Kadaffi, tendo até participando no golpe que levou o antigo líder líbio ao poder em 1969. Mas nem tudo foram rosas: Haftar desentendeu-se com Kadaffi em 1987 e passou quase 20 anos em exílio nos EUA. Regressou em 2011 para se aliar à intervenção da NATO na queda do líder líbio. Atualmente lidera o autodenominado Exército Nacional da Líbia, assumindo publicamente que prefere a segurança à democracia. Não apoia a Irmandade Muçulmana e tem como outro dos seus objetivos cortar a influência que este grupo tem no país.

Quem tem controlado o país desde 2011?

Depois da Guerra Civil, um governo provisório com supervisão da ONU ficou a gerir a Líbia. Em 2012 realizaram-se eleições para que o normal funcionamento do Estado e a democracia fossem finalmente impostos no país. Foram as primeiras em quase 40 anos. Porém, nunca a legitimidade da Congresso Nacional Geral foi consensual, nem mesmo depois de outras eleições, em 2014. Assim, o poder está dividido, principalmente entre cidades costeiras, tribos e grupos armados, uns com tendências islamistas — inclusive extremistas –, outros não. Só em Tripoli, por exemplo, existem quatro milícias diferentes. A par disso, também o Estado Islâmico do Iraque e do Levante continua a ser um dos grupos extremistas presentes no país.

A divisão geográfica atual da Líbia, que reúne diversos grupos políticos, fações militares ou até iniciativas extremistas.

Como é que as coisas ficaram assim?

A Líbia nunca teve tradições ou história democrática, ainda menos depois do regime opressivo liderado por Kadaffi. O país começou como uma colónia italiana, passando para uma monarquia frágil liderada pelo Rei Idris. Depois disso, foram mais de 40 anos de Muammar Kadaffi à frente da Líbia. Depois da Primavera Árabe, os sucessivos esforços da ONU para reconciliar as fações do país fracassaram sempre, principalmente devido às grandes disputas pelo poder.

Para além disso, a população líbia não tem grande capacidade literária ou oportunidades económicas para poderem ajudar a relançar o país numa recuperação que o tire de um período mais negro. Desde a queda do regime de Kadaffi, o estado do país permanece igual ou pior: em termos financeiros, a inflação aumentou e a moeda caiu; a nível social, os cortes de energia, as longas filas dos bancos e a violência intermitente não deixam a população ter um bom nível de vida. Segundo diz o The Guardian, pesquisas mostram que os líbios, principalmente os jovens, estão desesperados pelo fim dos combates.

Agora é esperada uma ofensiva militar de Haftar na capital Tripoli. O autodenominado Exército Nacional da Líbia estará a cerca de 20 quilómetros da cidade e esperará um confronto com as forças de Tripoli, que têm recebido apoio da Turquia e do Qatar. Estas fações apresentam-se como herdeiras dos rebeldes da guerra civil de 2011, têm sido acusadas de extremismo e apropriação política, sendo autoras de sequestros e outros atos de violência.

Os homens de Haftar já encontraram resistência noutras cidades, como foi o caso de Misrata e Zawiyah, cidades nas quais foram capturados cerca de 100 homens do general e do seu exército.