António Costa exibiu o Orçamento do Estado para 2022, impresso, durante debates televisivos de janeiro, dizendo que era esse mesmo — o de outubro — que ia apresentar agora em abril. Teve maioria absoluta e, nas linhas gerais, pouco mudou. Mesmo que o mundo tenha mudado, as grandes novidades são para responder à conjuntura internacional, como são exemplo as medidas de reação ao aumento do preço dos combustíveis. No relatório do Orçamento do Estado para 2022, há diferenças não só em medidas, previsões ou na descrição do contexto, mas também na linguagem. E, nalguns casos, no estilo.

Para se ter uma ideia, ao contrário do documento anterior, este tem 32 vezes a palavra “Ucrânia”, 11 vezes a palavra “guerra” e oito vezes a palavra “Rússia”. São os sinais da nova ameaça. Se o grande problema apresentado no Orçamento em outubro era a pandemia e os efeitos que deixara na economia, agora o grande obstáculo é mesmo a invasão da Ucrânia pela Rússia. O uso da palavra “invasão” também tem um propósito.

A maior parte do documento é, no entanto, um copy paste do documento anterior que chega ao ponto de repetir 2023 como data do horizonte de legislatura — agora já ampliado para 2026. Como é um relatório de continuidade, não é de estranhar que surja 119 vezes a palavra “continuar”, 243 a palavra “melhorar”, aos quais se junta ainda 78 vezes a palavra “prosseguir”. É a tal “continuidade de que fala Medina”.

Apesar de uma boa do documento ser igual ao apresentado por João Leão, há várias alterações de linguagem ao longo do relatório do velho-novo Orçamento do Estado para 2022.

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A pandemia deixou de ser o grande papão (agora, é a Guerra)

Orçamento de 2022 de Leão:

Ano e meio depois do início da pandemia, há condições para afirmar que o País respondeu de forma pronta e eficaz aos desafios de saúde pública e aos desafios económicos e sociais que enfrentou.

Orçamento de 2022 de Medina:

O Orçamento do Estado para 2022 é apresentado num contexto marcado pela recuperação da economia portuguesa e pelos desafios e incerteza resultantes da invasão militar da Ucrânia pela Rússia. As tensões geopolíticas que resultam da referida invasão em fevereiro de 2022 vieram agravar as pressões inflacionistas através de uma aceleração do preço dos combustíveis, das matérias-primas energéticas e de diversos bens primários.

Logo nas primeiras linhas do relatório do Orçamento do Estado, no sumário executivo, vê-se as diferenças naquele que é apontado como o maior fator de instabilidade. Se em outubro as atenções estavam todas voltadas para a variável pandemia, agora a “invasão militar da Ucrânia pela Rússia” é o acontecimento que surge como grande causador de “incerteza”. São notórias, ao longo do documento, as preocupações com as tensões geopolíticas que existem, bem como o aumento da inflação provocada pela Guerra da Ucrânia.

O otimismo resfriou

Orçamento de 2022 de Leão:

Portugal inicia um novo ciclo de crescimento depois da maior crise das últimas décadas. A recuperação dos níveis de riqueza pré-pandemia já em 2022 constitui um objetivo ambicioso, para o qual o Orçamento do Estado é pilar essencial à sua concretização. As opções que fizemos no passado recente permitiu-nos responder aos desafios da emergência que a pandemia nos impôs. As opções que fazemos agora permitirão responder mais uma vez aos portugueses, recuperando o País e construindo o futuro.

Orçamento de 2022 de Medina:

Portugal iniciou um novo ciclo de crescimento depois da maior crise das últimas décadas. Assegurar uma recuperação completa face aos desafios que o contexto geopolítico nos coloca constitui um objetivo ambicioso, para o qual o Orçamento do Estado contribui enquanto pilar essencial. As opções que fizemos no passado recente permitiram-nos responder aos desafios da emergência que a pandemia nos impôs. As opções que fazemos agora permitirão mitigar os riscos que enfrentamos, responder mais uma vez às necessidades dos portugueses, protegendo as famílias e empresas, recuperando a economia e construindo um futuro melhor para o nosso País.” 

No Orçamento de 2022, versão outubro, o relatório do OE dizia de forma clara que o “objetivo ambicioso” do Governo era “recuperar os níveis de riqueza para o pré-pandemia já em 2022″. Ora, no mesmo documento, escrito já sob tutela de Fernando Medina, o objetivo é menos otimista. Já não passa para ir para níveis de riqueza pré-março de 2020, mas apenas por uma “assegurar uma recuperação completa” tendo em conta o “contexto geopolítico”. Na versão Medina, há mais um detalhe de linguagem: o novo ministério faz questão de acrescentar que quer responder às necessidades dos portugueses “protegendo as famílias e as empresas” e em vez de se referir ao “País”, coloca um pronome pessoal e fala no “nosso país” para o qual não quer propõe apenas um “futuro”, mas um “futuro melhor”.

Há ainda outro detalhes interessantes. João Leão definia duas grandes prioridades neste sumário executivo: a recuperação económica e social e o aumento do rendimento das famílias. Já Fernando Medina, desdobra em seis: a mitigação do choque geopolítico, reforçar os rendimentos das famílias, apoiar a recuperação das empresas, investir com foco na transição climática e digital, a recuperação dos serviços públicos e, por fim, a consolidação orçamental. Há várias diferenças aqui, a começar pela centralidade do chamado “choque geopolítico” (mais uma vez a Ucrânia). Depois, a necessidade de referir as empresas como prioridade. No fim, a insistência das “contas certas” com um jargão que já foi maldito no pós-troika: a consolidação orçamental.

O crescimento que virou revisão em baixa

Orçamento de 2022 de Leão:

As projeções mais recentes das instituições internacionais (OCDE e BCE) apontam para a continuação de uma forte expansão da atividade económica mundial em 2022. De acordo com a OCDE, prevê-se que o PIB mundial cresça 4,5% em 2022 (5,7% em 2021), mais 0,2 pp face ao previsto nas projeções de maio de 2021, em resultado da revisão em alta do crescimento esperado nas economias dos EUA e da área do euro (Espanha e Alemanha).”

Orçamento de 2022 de Leão:

Até fevereiro, as projeções das instituições internacionais apontavam para a continuação de uma forte expansão da atividade económica mundial em 2022, superando-se a quebra sentida nos dois anos precedentes, fruto da pandemia de COVID-19. Contudo, perante as adversidades de caráter excecional e de enorme gravidade relacionadas com a guerra na Ucrânia, iniciada na semana final de fevereiro, a generalidade das instituições e organismos internacionais tem procedido à revisão em baixa do crescimento económico mundial e à revisão em alta da taxa de inflação para o ano de 2022.”

Quando o Governo apresentou o Orçamento em outubro as perspetivas macroeconómicas apresentavam um elevado grau de otimismo de que ia existir “uma forte expansão da atividade económica mundial em 2022”. A 24 de fevereiro, tudo mudou. O novo documento é auto-explicativo sobre essa matéria, lembrando que “até fevereiro” era esse crescimento mundial expansivo que era esperado. Agora, destaca, a “generalidade das instituições internacionais” fez uma “revisão em baixa” desse crescimento económico mundial, acompanhada por uma inflação em sentido inverso: que se espera galopante.

Aumento do salário mínimo nacional. A meta ignorada de 2026

Orçamento de 2022 de Leão:

Em 2022, o salário mínimo nacional deverá continuar a trajetória de valorização significativa dos últimos cinco anos, mantendo-se o compromisso de alcançar os 750 euros em 2023. “

Orçamento de 2022 de Medina:

Em 2022, o salário mínimo nacional continuou a trajetória de valorização significativa dos últimos cinco anos, atingindo os 705 euros e mantendo-se o compromisso de alcançar os 750 euros em 2023.” 

Há uma ligeira correção no que diz respeito ao salário mínimo nacional . Na versão de outubro, o Governo de António Costa dizia que o salário mínimo deveria continuar a trajetória em 2022. Apesar de o país estar em duodécimos (ou seja, sem orçamento), o Governo subiu o salário mínimo em Conselho de Ministros. Daí que tenha sido feita a correção de “deverá continuar” para “continuou”. O que é estranho é o que vem a seguir: o documento de outubro falava no “compromisso de alcançar os 750 euros em 2023”. Ora, 2023 era a data do fim da legislatura e, por isso, fazia sentido referi-la como horizonte. Acontece que o fim da legislatura agora é de 2026. E mais do que isso: o programa eleitoral do PS compromete-se com um aumento do salário mínimo para 900 euros até 2026. O novo orçamento ignora essa nova meta do PS e do Governo de António Costa (que já tinha sido apresentada numa Comissão Política Nacional do PS nas vésperas do chumbo do orçamento na generalidade).

Defesa. Mesmo dinheiro, novas preocupações

“Portugal acompanhará o reforço da defesa europeia e da solidariedade transatlântica”. A garantia é dada pelo Governo, mas, no essencial, a dotação orçamental é exatamente a mesma em relação ao documento de outubro – quando a guerra na Ucrânia era tudo menos uma realidade.

“As sociedades europeias, de forma muito particular na sua dimensão de defesa, enfrentam hoje ameaças e desafios, que reforçam a necessidade de assegurar os compromissos internacionais assumidos por Portugal no quadro da NATO e da União Europeia, num caminho de modernização e valorização das Forças Armadas”, argumenta o Governo, “prometendo atuar diligentemente para reforçar a segurança e a defesa europeia” e respeitar os compromissos com a NATO no “flanco leste” e nos esforços da guerra na Ucrânia. “Dentro das capacidades existentes”, salvaguarda-se.

Educação. Um piscar de olho a Nogueira

Quando ainda não se sabia quem ia mandar na pasta da Educação, Mário Nogueira foi avisando que a continuidade de Tiago Brandão Rodrigues seria uma “provocação” para a classe. António Costa fez a vontade ao líder da Fenprof e trocou Brandão por João, João Costa, até aqui secretário de Estado na mesma área. Nogueira foi delicodoce na reação, dizendo que o novo ministro da Educação tinha a “vantagem” de “conhecer os dossiers” e de saber “exatamente o que é preciso fazer”.

Olhando para as duas versões do Orçamento (a chumbada e agora apresentada) não se pode dizer que existam grandes diferenças – nem sequer na verba disponível, como explica aqui o Observador. Mas nas letras pequeninas do contrato orçamental existe uma mudança de tom evidente.

O novo ministro prometeu o “reforço da escola pública dotada de docentes em número, qualidade e motivação necessárias”, comprometeu-se a alterar o “regime de recrutamento” dos professores, para reduzir a “mobilidade” entre escolas e incentivar os “vínculos” permanentes, alterar o modelo de formação no Ensino Superior e ainda criar “incentivos” para fixação em zonas do país onde a oferta é escassa.

Economia. A dependência energética e o Banco de Fomento

Também aqui o novo contexto internacional altera grande parte do argumentário utilizado, que já seria naturalmente diferente uma vez que o novo titular da pasta – António Costa Silva – absorveu a pasta do Mar, que antes tinha direito a existência própria.

No entanto, a diferença mais relevante entre uma e outra versão, é a preocupação acentuada com a necessidade de garantir que o país, e a Europa como um todo, tem independência energética e alimentar depois das fragilidades que a guerra na Ucrânia expôs.

“As consequências das perturbações nas cadeias logísticas internacionais, no acesso a determinadas matérias primas e a recente invasão da Ucrânia pela Rússia, que reforçaram a urgência de acelerar o processo de descarbonização da indústria, reduzir a dependência de combustíveis fósseis, aumentar a autonomia europeia ao nível energético e diminuir a vulnerabilidade das economias europeias perante choques exógenos”, justifica o novo ministro.

Em comparação com o antecessor Pedro Siza Vieira, Costa Silva deixa claro que fará da “transição climática (diversificando fornecedores de energia, apostando na sustentabilidade do energy mix e na eficiência energética)” e da “transição digital” as suas duas grandes prioridades.

Também há uma palavra sobre o Banco de Fomento, uma ideia que nasceu algures de 2012 e que só saiu finalmente do papel já no final de 2020.

Aqui, Costa Silva imprime uma visão diferente da de Siza Vieira e deixa claro que pretende um banco público a “responder às falhas de mercado identificadas (por exemplo, em determinados segmentos ou maturidades) numa lógica de complementaridade com instituições e investidores privados, e não em concorrência direta com as mesmas”, ideia que estava apenas implícita na anterior versão.

Agricultura. Combater a dependência que guerra expôs

Tal como na questão da energia, o Governo reconhece que o conflito na Ucrânia veio evidenciar as fragilidades que o país e a Europa enfrentam quando uma ou mais cadeias de abastecimento importantes são subitamente interrompidas ou parcialmente destruídas.

Em relação à proposta de Orçamento de outubro, o Ministério da Agricultura, que continua a ser tutelado por Maria do Céu Antunes, vem agora assumir que o “reforço na obtenção de matérias primas alimentares deve merecer uma maior aposta nacional e europeia, visando o aumento da autonomia estratégica”.

“A rutura dos fluxos comerciais de mercadorias-chave para o sector da agricultura, da pesca e da aquicultura, resultado do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, está a agravar o aumento dos preços dos principais fatores de produção, como a energia e as matérias-primas. O impacto combinado desses aumentos de custos e da escassez de matérias de primas é sentido por toda as fileiras agrícolas e do pescado, nomeadamente a produção e a transformação dos produtos de pesca e aquicultura”, lê-se nesta nova versão.

Com a secretaria das Pescas a ficar desta vez na Agricultura – antes existiam no Mar, que deixou de existir enquanto Ministério – Maria do Céu Antunes assume agora que a pesca pode ser “solução, pela sua dimensão social e económica, pela disponibilização de alimentos com baixa pegada de carbono e pelo seu contributo para a saúde pública e para a segurança alimentar” para garantir essa tal “autonomia estratégica” no plano alimentar.

Administração Interna. Para o SEF a palavra é agora “extinção”

No Orçamento anterior, desenhado antes de a proposta de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ter sido formalmente fechada no Parlamento, ainda se falava na hipótese de reestruturar. Agora, José Luís Carneiro, titular da pasta, fala claramente na extinção do organismo e na sucessora Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo – em matéria policial e de investigação criminal, as competências passam para a GNR, PSP e PJ.

Em relação ao documento de outubro, pensado por Francisca Van Dunem (que sucedeu a Eduardo Cabrita), existe outra diferença: assume-se “o combate à sinistralidade rodoviária uma prioridade fundamental do Governo”.

Ensino Superior. Refugiados são nova prioridade

Numa área onde tudo se mantém praticamente constante apesar de ter mudado de pasta – Manuel Heitor saiu; Elvira Fortunato entrou –, a diferença mais relevante é a inclusão dos efeitos da guerra ucraniana entre as preocupações do Ministério.

Lê-se nesta nova versão: “[Importa] garantir a rápida integração dos deslocados beneficiários de proteção temporária e a continuidade dos estudos de ensino superior a todos aqueles que o frequentavam no momento do início da invasão militar da Ucrânia, através de vias de ingresso apropriadas e a atribuição dos apoios sociais adequados.”

Cultura. Menos dinheiro, menos apoios e menos uma taxa

Pedro Adão e Silva, que substituiu Graça Fonseca na pasta da Cultura, deixou logo uma marca: em seis meses, a ideia taxar os operadores de serviços de televisão por subscrição (MEO, Vodafone, NOS, etc.) por semestre e por cliente caiu.

Não é a única novidade relevante face ao documento apresentado em outubro, como explicava aqui o Observador. À cabeça, a Cultura vai ter menos 24,6 milhões do que na proposta anterior.

Na altura, também se assumia o compromisso de  “mapear as necessidades de financiamento dos órgãos de comunicação social em Portugal”,  remetendo para o controverso apoio dado aos media durante a fase aguda da pandemia. Desta vez, no entanto, o Adão e Silva só promete rever “o atual sistema de apoios aos órgãos de comunicação de âmbito local e regional” – os grandes grupos de comunicação social não são mencionados.