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RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

Uma medida por dia. E se o cultivo de canábis para consumo próprio fosse legal?

O cultivo de canábis para consumo pessoal é uma das medidas ligadas ao tema da legalização. A discussão não é nova em Portugal, com o argumento de que poderá reduzir o mercado negro.

O que é que se se entende por “autocultivo” no mundo da canábis? É a primeira vez que se fala nisto? E que efeitos pode ter? O Observador passou à lupa os programas dos principais partidos que vão a votos a 10 de março e até ao dia das legislativas vai dissecar uma proposta por dia.

Em 2019, foi permitido o consumo de canábis para fins medicinais em Portugal, com uma série de regras e controlos apertados. Já o uso para fins pessoais ou recreativos tem gerado mais discussão. No ano passado, o Parlamento começou a discutir mais uma vez a questão, mas a crise política fez o debate cair por terra.

Nestas legislativas, pelo menos o Bloco de Esquerda (BE), Livre e a Iniciativa Liberal (IL) mencionam a legalização da canábis para uso pessoal. Porém, os bloquistas exploram uma questão mais concreta, ligada à legalização do autocultivo – ou seja, a possibilidade de cultivar a planta em casa, para consumo próprio.

O que defende o Bloco?

No programa eleitoral deste ano, o Bloco reconhece que “o corajoso passo da descriminalização do consumo de drogas”, dado há 20 anos, foi “decisivo no sentido de uma política correta de abordagem aos consumos”. No entanto, é considerado que continuam a existir na lei “inaceitáveis paradoxos proibicionistas”, argumentando que as pessoas que escolhem consumir drogas devem “ser respeitadas na sua autonomia”.

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Assim, além da defesa da legalização da canábis para uso pessoal, “num enquadramento legal de regulação, desde a produção até à venda”, o BE inclui no seu programa eleitoral a medida da “possibilidade legal de autocultivo”. Embora haja mais forças políticas a defender a legalização do consumo da canábis para uso pessoal por maiores de idade, como o Livre e a Iniciativa Liberal, o Bloco especifica no programa a questão do cultivo para consumo pessoal.

“Em vez de proibicionistas anacrónicos e contraproducentes”, considera o BE, “é preciso apostar em medidas, que a par da liberdade de decisão sobre o consumo, promovam a prevenção e a redução de riscos”. Não são exploradas no programa questões mais concretas sobre o autocultivo, como sugestões sobre quantas plantas é que poderiam ser permitidas por casa, mas são destacados exemplos como Malta, que legalizou tanto o consumo como o autocultivo, para defender a posição a favor da legalização do autoconsumo.

O que é que se pretende com esta medida?

Alguns dos argumentos que têm vindo a ser explorados no debate sobre a legalização da canábis em Portugal incluem a prevalência de consumo desta droga, o peso que tem nas contraordenações e a existência de um mercado negro, que abre a porta a produtos adulterados.

Comecemos por números. O relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), com dados de 2022, indica que a canábis foi mais uma vez a substância ilícita com as maior prevalência de consumo ao longo da vida e também nos consumos recentes. Olhando para a população total, com idades entre os 15 e os 74 anos, a canábis tinha uma prevalência de 11% no consumo ao longo da vida e de 2% no consumo recente. Na faixa etária entre os 15 e os 34 anos, a prevalência era mais expressiva, na ordem dos 15%.

Noutra vertente, a canábis é também a principal substância presente nos processos de contraordenação por consumos de droga. Em 2022, foram registados 6.471 processos de contraordenação ligados à canábis, representando 79% dos processos de ocorrências nesse ano. Também foi a droga que os portugueses consideraram ter maior facilidade de acesso: 81% disseram ser fácil ou muito fácil ter acesso no prazo de 24 horas. O SICAD notou ainda que esta sensação de facilidade de acesso só tem aumentado com os anos — em 2017, a percentagem ficava-se pelos 61%.

Dinis Dias, vice-presidente da Cannativa – Associação de Estudos sobre Canábis, explica ao Observador que atualmente existe no país “um movimento social com uma certa abrangência e uma certa profundidade, que já está estruturado há alguns anos”, vendo com naturalidade que o “BE e outras forças políticas naturalmente queiram abordar” o tema da legalização da canábis. Concretamente em relação ao autocultivo, que a associação já inclui nas suas linhas de ação, acredita que, “embora não haja estudos que o comprovem em Portugal”, a legalização do autocultivo “teria o efeito de reduzir o mercado negro”. A razão é simples, diz Dinis Dias: “em Portugal não há alternativa para os consumidores portugueses que não seja o mercado negro. Todas as pessoas que conseguirem produzir a sua própria canábis estarão a subtrair àquela que seria traficada” no mercado paralelo.

Noutras ocasiões, o Infarmed, o regulador do medicamento, manifestou preocupação com o autocultivo, levantando questões como a contaminação ou a garantia de eficácia das substâncias. Dinis Dias refere que as objeções levantadas por esta entidade prendiam-se “exclusivamente com o autocultivo para fins medicinais”. “As preocupações do Infarmed podem ser legítimas quando aplicadas exclusivamente ao mercado da canábis medicinal e, ainda assim, sendo legítimas, na minha opinião baseada na experiência de vários países, não é justificada”, considera o vice-presidente da Cannativa, recorrendo a exemplos como o Canadá, que permite desde 2001 o consumo para fins medicinais e desde 2018 o uso recreativo, incluindo o autocultivo.

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O Canadá legalizou em 2018 a canábis para uso recreativo. Também é permitido o autocultivo

AFP via Getty Images

O responsável da Cannativa acredita que o objetivo principal da medida não seja “o incentivo económico” ou de dinamização da atividade ligada ao autocultivo. “As grow shops [lojas que vendem artigos legais relacionados com o cultivo e consumo de canábis] já existem há 20 anos em Portugal”, contextualiza, notando que devem existir cerca de “20 a 30 lojas a nível nacional”. Estas lojas não podem vender sementes de canábis, apenas artigos ligados ao cultivo, como equipamento de iluminação ou controlo de temperatura, detalha. “São regularmente visitadas por autoridades como a ASAE no sentido de perceber se existe mais algum tipo de venda”, explica Dinis Dias. A medida, “não contribuindo para o incentivo à economia, pelo menos contribuiria para regularização e estabilização dessa fileira do negócio em Portugal”, acredita.

O vice-presidente da Cannativa olha para a “regulamentação do consumo e do acesso à canábis para fins recreativos”, incluindo o autocultivo, como algo “extremamente importante”. “Não só porque retiraria o estigma sobre as pessoas que consomem, que são perfeitamente funcionais na sociedade”, como também pelo impacto que poderia ter noutros setores, defende. “O modelo atual, que é o modelo do proibicionismo, coloca a exclusividade do negócio das drogas nas mãos das máfias e do mercado negro, portanto não se regula a qualidade”. Esta questão tem “implicações no Serviço Nacional de Saúde”, acrescenta, “porque existem produtos contrafeitos ou contaminados que depois têm efeito na saúde dos consumidores”.

Com a existência do mercado negro, as “vendas não são taxadas e, com a proibição, o Estado garante, no fundo, o monopólio de negócio a redes internacionais”, continua. O vice-presidente da Cannativa defende que a legalização do consumo teria efeitos do “ponto de vista do sistema de saúde, sistema social e do sistema prisional português”.

“Claro que se poderá contra-argumentar que facilitará o acesso à população e que poderá aumentar eventualmente o consumo, mas a verdade é que o consumo já é completamente acessível hoje em dia”, refere. A associação defende que, a haver iniciativas e medidas deste género, terão de ser “sempre acompanhadas por uma forte componente da prevenção e informação, nomeadamente a nível das camadas etárias mais jovens”, remata Dinis Dias.

Uma empresa de Altura produz canábis para fins medicinais

Há vários partidos a defender a legalização da canábis para fins recreativos, mas apenas o BE especifica o autocultivo

LUÍS FORRA/LUSA

Qual é o ponto de situação atual em Portugal? E lá fora?

Em Portugal é feita uma distinção clara entre o uso da canábis para fins medicinais e o uso para fins recreativos. Em 2018 foi estabelecido um quadro legal e desde 2019 é autorizada a utilização da canábis para fins medicinais, com regras apertadas a cumprir, desde a colheita até à distribuição. Na altura do debate sobre a canábis medicinal, partidos como o BE e o PAN já exploraram questões como o autocultivo, mas a ideia caiu por terra.

Em relação à legalização sobre o uso recreativo, a discussão também já vai longa e tem vindo a ser defendida por vários partidos ao longo dos anos, com mais ou menos pormenores sobre o autocultivo. Em 2022, por exemplo, os bloquistas já incluíram o cultivo para uso pessoal, com um limite de cinco plantas por habitação, numa das iniciativas legislativas sobre o tema. No ano passado, a IL também avançou com uma iniciativa ligada ao uso recreativo da canábis, incluindo o autocultivo. Na altura, a IL previa o cultivo de até seis plantas por pessoa. Com a dissolução do parlamento, as iniciativas legislativas ficaram sem efeito.

Líder da JS diz que PS deve aproveitar maioria absoluta para legalizar a canábis

No panorama internacional, a Alemanha é um dos exemplos mais recentes de desenvolvimentos na questão do cultivo para consumo pessoal. Foi aprovada no Bundestag a proposta legislativa que torna legal o cultivo de até três plantas para consumo próprio. O ministro da Saúde alemão, Karl Lauterbach, defendeu como objetivos principais da medida o “combate ao mercado negro e o aumento da proteção de crianças e jovens”, já que o aumento de canábis no país disparou entre a população mais jovem.

Alemanha aprova projeto para legalizar consumo recreativo de canábis

Nem todos os países que legalizaram o uso recreativo de canábis permitem o cultivo para consumo pessoal. Na Europa, Malta foi o primeiro país a permitir o autocultivo, em 2021. Quando o parlamento maltês aprovou o autocultivo, ficou inscrito que os maiores de 18 anos poderiam cultivar quatro plantas por residência e ter até 50 gramas armazenadas resultante dessa produção própria. Em julho de 2023, o Luxemburgo juntou-se à lista do autocultivo, legalizando ter quatro plantas por residência.

Noutros continentes, o Canadá permite o autocultivo de até quatro plantas desde junho de 2018. Há ainda registo da legalização do autocultivo de canábis no Uruguai desde 2013.

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