Sim, foi há 75 anos, em Setembro de 1944, que um desconhecido professor austríaco, exilado na London School of Economics, publicou na editora anglo-americana Routledge um livro que viria a ser um best-seller mundial: The Road to Serfdom [O Caminho para a Servidão]. Está publicado entre nós pelas Edições 70 (2009), e foi inicialmente publicado em 1977 por iniciativa do saudoso Orlando Vitorino — que convidou Hayek a falar em Lisboa, no Grémio Literário. (Orlando Vitorino contou-me uma vez, numa deliciosa conversa ao fim da tarde, junto da lareira da sua encantadora casa perto de Sesimbra — corajosamente ainda hoje preservada pela família — que estavam menos de 20 pessoas nessa sessão em Lisboa com Hayek, em 1977).

Fiquei por isso muito honrado ao ser convidado para escrever o prefácio para a nova edição das Edições 70, publicada em 2009 — onde prestei o incontornável tributo a Orlando Vitorino. Não vou aqui repetir o (talvez demasiado) longo texto que está publicado, mas gostaria de recordar dois ou três pontos.

Em primeiro lugar, Hayek era em 1944 quase uma voz no deserto: anti-nazi, anti-comunista e… crítico do socialismo estatista — que na época tendia a tornar-se o dogma politicamente correcto. Ainda por cima, Hayek designava-se como simplesmente liberal. Karl Popper, na Sociedade Aberta e os seus Inimigos, em 1945, também na Routledge, viria a reforçar esta voz liberal. Joseph Schumpeter, em 1941, no seu  Capitalism, Socialism and Democracy, tinha de certa forma re-lançado as bases do argumento liberal anti-estatista.

Com vibrante energia, Hayek recordou o que surpreendentemente estava a ser esquecido em 1944, devido à eficiente retórica comunista sobre a chamada “frente anti-fascista”: a II Guerra fora desencadeada em 1939 por uma desprezível aliança entre comunistas e nazis (o infame pacto Molotov-Ribbentrop). Foram estes aliados nazis e comunistas que invadiram a Polónia em Setembro de 1939 — e foi aí que começou a II Guerra, porque o Reino Unido e a França tinham um nobre acordo de defesa mútua com a Polónia.

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A URSS mais tarde saiu daquela aliança original com os nazis —mas apenas porque foi invadida por eles (tendo aliás sido avisada por Churchill, mas Staline terá dito que confiava mais no nacional-socialista Hitler no que no capitalista-imperialista Churchill). Convém aliás recordar que o único jornal que foi autorizado a circular pelos nazis, nos primeiros dias após a ocupação de Paris em Junho de 1940, foi o órgão central do partido comunista francês.

O segundo ponto é o seguinte: a razão pela qual o nacional-socialismo, o fascismo e o comunismo se coligaram não foi meramente circunstancial. Foi profundamente ideológica. Eles eram todos anti-capitalistas e anti-liberais. Vamos aliás ser mais claros: eles eram basicamente e ostensivamente anti-capitalistas: contra a economia descentralizada de mercado, fundada na propriedade privada protegida pela lei — e a favor de uma economia centralmente comandada pelo estado, com vista a atingir certos objectivos centralmente definidos como “objectivos nacionais”, ou “objectivos da classe operária” — ou, por outras palavras mais simples, “os objectivos correctos”, ou “certos”.

Hayek desenvolveu uma crítica demolidora destes sonhos colectivistas e estatistas. Ninguém sabe o suficiente para centralmente definir os “objectivos” de uma sociedade complexa. Numa sociedade livre, existe um conhecimento tácito e descentralizado que é diariamente processado pelos consumidores, famílias, empresas e outras instituições civis. Acima de tudo, esse processamento está submetido a uma severa disciplina impessoal — a disciplina do mercado sob a lei — que nenhuma entidade particular consegue dirigir.

Em severo contraste, se esta disciplina impessoal do mercado fundada na propriedade privada e na concorrência sob a lei, for substituída pela planificação central, o resultado será inelutável: corrupção e clientelismo, gerados pelas decisões arbitrárias do estado; quebra do crescimento económico; empobrecimento geral. Todas as experiências comunistas confirmaram até agora esta previsão, da URSS à China, de Cuba à Coreia do Norte e mais recentemente à Venezuela.

Hayek aliás acrescentou um argumento adicional (que seria fortemente secundado por Popper) e que é hoje particularmente politicamente incorrecto: a ideia de que a sociedade deve ser centralmente planificada por uma autoridade central é uma ideia basicamente primitiva e anti-ocidental. Na tradição greco-romana, judaica e cristã, as pessoas e as instituições descentralizadas não obedecem às ordens de comando do poder central; elas obedecem a regras gerais, abstractas e iguais para todos — que se aplicam igualmente a governantes e governados.

Aos olhos das culturas políticas primitivas, isto gera um paradoxo dificilmente compreensível: por um lado, os liberais recusam rebeldemente obedecer a ordens de comando arbitrários dos poderes de plantão; por outro lado, obedecem voluntariamente e rigorosamente a regras gerais de boa conduta.

Hayek era, a propósito, um orgulhoso seguidor de regras gerais, mas não de comandos específicos. Gostava particularmente dos Clubes de Londres — onde estritas regras gerais de vestuário e boa conduta são observadas (mesmo nos dias que correm). Mas, por isso mesmo, não existe nenhum código específico sobre as opiniões que podem ser expressas — e que, por outras palavras, simplesmente devem ser livres. Até ao final da vida (a 23 de Março de 1992), Hayek manteve no seu escritório em casa uma orgulhosa foto de Winston Churchill.