“Não há 18% de racistas e xenófobos em Portugal”

Pedro Nuno Santos, Lisboa, 10 de março de 2024

1 Sempre me irritaram as pessoas que não conseguem compreender regras básicas da democracia. Por exemplo, os resultados eleitorais não têm de ser do meu agrado ou do agrado de a, b, c ou d. Os resultados eleitorais são a expressão da vontade popular, aplicando-se a regra da maioria: ganha quem reunir mais votos e/ou mais deputados.

E esses resultados devem ser sempre respeitados quando o escrutínio eleitoral é livre, transparente e verdadeiro.

Vem isto a propósito das reações claramente antidemocráticas de alguns cidadãos e politicos relevantes nas redes sociais. É particularmente triste ver colegas meus — jornalistas que respeito profissionalmente — envolvidos em polémicas relacionadas com algo tão básico como aceitar um resultado eleitoral. Tiveram todos o seu momento Isabel Meireles.

É por isso de louvar e de enaltecer o discurso de Pedro Nuno Santos ao final da noite eleitoral. Foi o discurso de um verdadeiro democrata. Mandou calar os seus camaradas que apupavam jornalistas (algo normal nas sedes partidárias em noites eleitorais), aceitou democraticamente a derrota e fez a afirmação da noite (“não há 18% de racistas e xenófobos em Portugal”, referindo-se ao resultado do Chega) perante uma audiência que tinha cantado minutos antes “fascismo nunca mais!” de punho cerrado.

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2 É inquestionável que a AD de Luís Montenegro é o vencedor da noite precisamente por ter ganho as eleições legislativas antecipadas. Até ao momento, e quando ainda faltam contar os votos dos dois círculos de emigração, a AD teve cerca de 1,8 milhões de votos, que representam 29,49% dos votos e, após conversão em mandatos, significam 79 deputados eleitos: 77 deputados para o PSD + 2 deputados para o CDS.

A AD conseguiu mais 146 mil votos do que a soma total do resultado total do PSD e do CDS em 2022 e conseguiu eleger mais oito deputados. Isto quando comparamos o que é comparável: os resultados eleitorais obtidos em território nacional e antes da contagem dos círculos de emigração.

O PS de Pedro Nuno Santos teve menos votos e menos deputados — e assim deverá continuar após a contagem dos votos da emigração, como o próprio secretário-geral do PS reconheceu na noite eleitoral.

Por isso mesmo, Montenegro tem todas as condições para ser indigitado como primeiro-ministro por Marcelo de Rebelo de Sousa, após a conclusão do escrutínio eleitoral e a audição de todos os partidos parlamentares pelo Presidente da República.

A acrescentar à vitória da AD, há outra questão fundamental: o país virou claramente à direita com o Chega a alcançar os 18,06% dos votos com 1,1 milhões de eleitores e 48 deputados; e a Iniciativa Liberal conseguiu manter os seus oito deputados, subindo ligeiramente para os 5,08% dos votos.

Contas feitas, o bloco da direita (AD/IL/Chega) tem até ao momento 52,63% e 135 deputados e o bloco da esquerda (PS/BE/PCP/Livre/PAN) tem 41,61% dos votos e 91 deputados.

Só para colocar as coisas em perspetiva esta vitória do bloco da direita é a maior desde 1991 e o terceiro melhor resultado desde 1976. De legitimidade eleitoral estamos conversados.

3 Vamos agora falar do Chega e dos seus 1,1 milhões de votos que deixou a bolha mediática em choque ao aperceber-se que a sua influência não é, afinal, retumbante. Também por isso, é fundamental tentar perceber quem são estas pessoas e as suas razões para votar em André Ventura.

Certamente que serão feitos os respetivos estudos científicos pós-eleitorais mas os estudos de opinião da Universidade Católica que conhecemos das legislativas de 2022 e de 2024 permitem-nos afirmar o seguinte:

  • é intergeracional — ou seja, têm uma presença em todas as faixas etárias, tendo subido muito junto dos primeiros eleitores desde 2019 e é mais fraco entre os mais velhos;
  • é interclassista —  tem eleitores em todas as classes sociais, tanto os mais pobres, como os mais ricos; apesar de mais preponderante em eleitores com apenas o terceiro ciclo de escolaridade e o ensino secundário:
  • é interegional — elegeu em quase todos os círculos, com exceção de Bragança; é um partido nacional, apesar de ser mais forte no Algarve e no Alentejo e nas áreas rurais em vez dos grandes centro urbanos:
  • é interideológico — ganha eleitores a todos os partidos, desde o PCP até à IL, com especial apetência pelo PS. É claro que o Chega foi um dos principais catalizadores da baixa da abstenção e vai roubar votos a todos os partidos, principalmente aos novos eleitores e a uma parte dos eleitores que deram a maioria absoluta ao PS.

Outra questão é como foi possível o Chega chegar aqui? A resposta é complexa e passará necessariamente pelos temas que André Ventura tem explorado, como o combate à corrupção, a imigração e a crítica sistemática ao sistema político.

Mais do que voto de protesto, os portugueses que votaram em Ventura querem abanar o regime para forçá-lo a ser mais eficiente e mais próximo das suas reinvindicações de um país mais próspero e justo.

A vitória do Chega no círculo eleitoral de Faro é, aliás, uma metáfora quase perfeita da ascensão de Ventura. Cansados de serem ignorados, os algarvios fizeram-se ouvir de forma audível para alertar para o drama da falta de água, para o mau acesso à saúde e a falta de investimento num novo Hospital Central, além do tema da imigração que é relevante para a região.

Veja-se o caso específico da falta de água, nomeadamente no barlavento algarvio. Há 30/20 anos que a ciência permitiu antecipar que um clima mais próprio do deserto do que do mediterrâneo iria impor-se.

A pergunta que deixo é simples: o que fizeram os governos do PS e do PSD para prevenir a atual situação calamitosa, em que já há muitos pomares de laranjais sem água para regar, por exemplo? Pouco ou nada.

4 O voto do Algarve também é um sinal claro amarelo vivo para o PSD — que passa a terceira força política da região, com menos 11 mil votos do que o Chega

O Chega, por exemplo, ganhou em Portimão — um concelho que sempre foi governado pelo PS em termos autárquicos desde o 25 de abril. E é entre Portimão e Lagos que se situa a maior barragem do barlavento, a da Bravura, que está praticamente vazia.

Acrescente-se a este drama da água, a questão da imigração descontrolada — tema que é muito presente no Algarve e é percecionado como um problema pelos residentes —, o acesso à saúde ou a calamitosa rede ferroviária para facilmente concluírmos que os algarvios se sentem abandonados e zangados com Lisboa.

E logo uma região que tem um contributo relevante para o PIB nacional e para a captação de receitas fiscais para o Orçamento de Estado.

Os algarvios, como os restantes portugueses, votaram no Chega para protestarem e para abanarem o sistema político. Cabe agora à AD dar visibilidade aos problemas acima descritos e encontrar soluções.

5 A partir do Algarve, podemos extrapolar para outras zonas do país e a conclusão é exatamente a mesma: não podemos ignorar 1 milhão de votos porque representam concidadãos que estão descontentes com o regime.

Tal como Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos disseram na noite das eleições, temos que perceber as razões da insatisfação e encontrar soluções para os problemas percecionados pelo eleitorado do Chega.

Tendo ganho as eleições, cabe a Montenegro a responsabilidade liderar essa procura de soluções no âmbito de um Governo minoritário que deverá incluir PSD, CDS e a Iniciativa Liberal.

Em primeiro lugar, é preciso explicar que a política do “não é não” significa que a AD não irá formar Governo com o Chega nem aceitará ministros indicados por André Ventura.

Agora é inevitável o seguinte: Montenegro terá de negociar no Parlamento instrumentos de governação essenciais, como os orçamentos de Estado e outros diplomas essenciais, com todos os grupos parlamentares.

Aliás, Montenegro deixou claro no quarto ponto da sua declaração de vitória que “os portugueses também disseram que os partidos, nomeadamente aqueles que têm representação parlamentar, devem privilegiar o diálogo e a concertação entre líderes e entre partidos.”

Tal diálogo irá incluir inevitavelmente o Chega de André Ventura e isso não significará que Montenegro está a faltar à sua palavra.

Por exemplo, o orçamento rectificativo que António Leitão Amaro e outros dirigentes do PSD admitiram apresentar logo em abril/maio, poderá ser uma boa forma de testar a relação ente a AD e o Chega por várias razões:

  • porque permitirá uma clarificação entre a AD, o Chega e eventualmente o PS;
  • e porque há um conjunto de temas urgentes que deverão ser fáceis de acordar entre a AD e o Chega e que podem igualmente interessar ao PS: o programa de emergência para a Saúde, a reposição do tempo de serviço dos professores ou a equiparação salarial entre todas as polícias e a PJ, por exemplo.

Pedro Nuno Santos foi muito claro sobre isso ao dizer que os programas da AD e do PS são incompatíveis, logo não viabilizará nenhum orçamento de Estado e apenas admite acordos pontuais. Parece-me que o secretário-geral do PS está a repetir o erro dos Açores e pode ser obrigado a mudar de ideias, sendo certo que alguns dos seus conselheiros estão divididos sobre o que fazer.

Veremos se Pedro Nuno Santos manterá a palavra perante a pressão que haverá no sentido de o levar a negociar com Montenegro.

6 Certo é que Luís Montenegro vai tentar fazer o que fez Cavaco Silva em 1985 — tentar governar com um Executivo minoritário, tentando negociar orçamentos e leis com o Parlamento. Partindo do pressuposto de que o Presidente da República o indigita como primeiro-ministro, eis os passos que Montenegro vai ter de dar:

  • primeiro terá de apresentar uma solução de Governo ao Presidente Marcelo. Teremos um Governo AD/IL? Se for assim, isso abrirá questões importantes em termos de peso entre a IL e o CDS dentro do Governo;
  • É fundamental que seja um Executivo coeso em que PSD, CDS e IL sejam um facto de estabilidade – e não um facto de instabilidade;
  • É aqui que o CDS e a IL têm de se recordar do episódio do irrevogável de Paulo Portas para perceberem que não podem ser um foco de instabilidade.

A ideia-chave para a governabilidade é simples de explicar: a esquerda não consegue repetir 2015 porque não tem maioria absoluta.

Agora o Chega terá de mostrar se quer continuar a ser um partido de protesto ou se quer influenciar a governação Se o Chega quiser influenciar, assistiremos a um processo negocial normal entre partidos parlamentares

Por outro lado, e por muito que se tente construir a ideia dos três blocos ou do fim do bipartidarismo, a verdade é que o Chega nunca votará ao lado da esquerda para derrubar um Governo da AD.

Por isso mesmo, não deixa de se interessante constatar todo o hercúleo trabalho das esquerdas em se tentarem unir. Mariana Mortágua quer uma espécie de cimeira para tentar concertar estratégias.

Já Rui Tavares apela a uma clarificação da AD e da IL sobre o Chega, como se acreditasse que o partido de Ventura alguma vez votaria ao lado das esquerdas uma eventual moção de rejeição do Governo.

7 Para terminar, é importante referir que António Costa foi um dos grandes derrotados da noite. Costa não foi a votos mas foi a sua governação de oito anos. Foi o seu legado como incumbente que os eleitores avaliaram.

Foi o legado na saúde — setor em que os cidadãos não tem médico de família e em que o Serviço Nacional da Saúde não responde às necessidades básicas dos cidadãos. Foi o legado na educação em que dezenas de milhares de alunos não têm professor. E é a crise na habitação, em que os oito anos do Governo do PS só agravaram o problema.

Mais do que tudo: foi António Costa (e Augusto Santos Silva) quem promoveram efetivamente o Chega, fazendo com que André Ventura fosse constantemente um dos protagonistas no Parlamento. Tudo para entalar o PSD.

Uma das grandes ironias destas eleições é que o PS perde claramente eleitorado diretamente para o Chega. A subida de votação do Chega não foi só feita através da abstenção, mas também de votos ganhos ao PS. Os socialistas perderam cerca de 540 mil votos e 43 deputados, enquanto que o Chega ganhou 36 deputados e cerca de 700 mil votos.

Por outro lado, o próprio António Costa teve no domingo uma primeiro exemplo de que já perdeu o poder de decidir e de mandar no PS.

Inopinadamente, Costa foi ao Hotel Altis reconhecer de forma pífia a sua quota-parte da responsabilidade na derrota do PS mas também para passar uma mensagem importante: Pedro Nuno Santos devia esperar pelos resultados finais dos círculos da emigração.

Ora, o secretário-geral não se escondeu e disse preto no branco ao final da noite eleitoral que quem mandava ali era ele, que iria conceder a derrota e assegurava que o “PS está unido”.

Vermos o que acontecerá no futuro a Luís Montenegro e a Pedro Nuno Santos.