1 Confesso que tem sido divertido assistir aos últimos dias de campanha eleitoral. Quando praticamente todas as sondagens, com a exceção de uma, dão uma tendência de vitória da coligação Aliança Democrática (AD) e dizem claramente que a maioria se faz à direita, tem sido quase hilariante assistir às teorias políticas sobre o pós-10 de março de uma boa parte dos comentadores mais engajados com o PS, PCP ou Bloco de Esquerda.

E porquê? Porque se percebe facilmente como têm um medo profundo da mudança. Estão tão conformados com os hospitais sem médicos e as escolas sem professores, estão tão habituados a que o PS governe — que a simples ideia de que alguém como Luís Montenegro, que levou tanta pancada desde que foi eleito presidente do PSD, chegue a primeiro-ministro os assusta.

E porquê? Porque é uma espécie de atestado da sua própria incompetência e a prova de como os preconceitos (ideológicos ou não) podem toldar a capacidade de raciocínio.

Chegou-se ao cúmulo dos mesmos comentadores que tratam André Ventura como um mentiroso compulsivo, tenham passado a acreditar na insinuação grosseira do mesmo Ventura (o tal mentiroso compulsivo) de que existirão alegadas “forças vivas do PSD” que garantiram que haverá um Governo PSD/Chega…

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Atenção que não estou a dizer que a vitória da AD está garantida — e não está. Ou que Montenegro não tenha merecido parte das críticas — como é óbvio, todos os líderes partidários podem e devem ser avaliados pelas suas estratégias.

Já regressarei a estes pontos mais à frente. Para já, quero fazer um balanço da campanha eleitoral.

2 O balanço até ao momento em que escrevo (4.ª feira à tarde) é relativamente fácil de fazer. Em primeiro lugar, não foi uma campanha propriamente muito concentrada nas propostas que os partidos apresentaram aos eleitores.

Assistimos mais a um combate político puro e duro em redor das perceções sobre a credibilidade dos candidatos e as políticas de alianças, do que propriamente sobre as soluções que os partidos têm para os problemas do país. É pena porque há muitas ideias que mereciam mais esclarecimento e aprofundamento.

A campanha foi claramente marcada pelo erro estratégico do PS (e da esquerda em geral) de focar a campanha na AD. Durante praticamente todos os dias da primeira semana e de uma parte da segunda semana, Pedro Nuno Santos (PNS) e os dirigentes do PS atacaram Luís Montenegro por tudo e por nada — deixando de lado as suas próprias ideias ou a defesa do legado dos últimos oito anos do PS.

Praticamente todos os dias, tivemos uma espécie de discurso do medo por parte do PS, Bloco de Esquerda e PCP. Começou com o inevitável Passos Coelho, passou para o tema da imigração, continuou com o tema do aborto e ainda com suspeitas (não fundamentadas) do regresso de alegados cortes nas pensões e outros traumas do tempo da troika.

AD/passado, AD/passado, AD/passado e mais AD/passado. Foi este binómio que atravessou a narrativa do PS e dos seus parceiros naturais BE e PCP durante boa parte da campanha.

Porque razão digo que foi um erro estratégico? Porque a AD e Luís Montenegro passaram a ser o centro da campanha quando o PS é o incumbente e devia ser o PS o principal adversário dos seus adversários.

Os papéis inverteram-se. O que fez com que Montenegro (os alvos de toda a esquerda) passasse a ser percecionado como o vencedor aos olhos do eleitorado.

Ou seja, o objetivo do PS era provocar o medo e a insegurança com a mudança que a AD protagoniza mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro porque promoveu a notoriedade do adversário.

3 A principal prova do falhanço da campanha do PS acabou por ser a chamada de António Costa à campanha — e principalmente por ser chamado com uma campanha em queda e para força a um esforço raro de mobilização que foi o comício do PS com casa cheia do Pavilhão Rosa Mota no Porto.

A estratégia inicial de PNS passava por mostrar que o PS era a única alternativa ao próprio PS. Para isso, Pedro Nuno tinha de passar um equilíbrio muito difícil ao fim de oito anos de governação.

Por um lado, tinha de honrar o legado e os bons resultados (nas áreas em que tal foram alcançados) dos governos de António Costa. Mas, por outro lado, tinha de ter caras que representassem uma renovação do partido — o que nunca aconteceu, tal era o foco de PNS na AD e em Montenegro. Como é que o PS faria melhor do que fez até agora exatamente com as mesmas pessoas?

É por tudo isso que a entrada de António Costa era um pau de dois bicos. Apesar da sua boa imagem no país (que continua a ser, apesar da Operação Influencer, melhor do que a do PS), a presença de Costa é uma vez mais um apelo ao passado. Além de que retira o protagonismo a PNS, criando a ideia de que o jovem líder do partido foi chamar o ‘pai’ político porque não é suficientemente forte para convencer o eleitorado…

O comício do PS na Aula Magna, em Lisboa, foi mesmo uma espécie de metáfora da campanha socialista: um evento que deveria representar um momento alto foi um ato falhado, com microfones que não funcionavam, sucessivas interrupções do discurso de Pedro Nuno e António Costa em silêncio.

4 A AD de Luís Montenegro, por seu lado, fez uma boa campanha — mesmo com alguns tiros nos pé ou com ‘fogo amigo’. A AD mostrou unidade durante a campanha eleitoral com Montenegro a ter o apoio de todos os ex-líderes o PSD e do CDS: Cavaco Silva, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, Luís Marques Mendes, Luís Filipe Menezes, Passos Coelho e Paulo Portas e Assunção Cristas.

O PS, por seu lado, não chamou António José Seguro à campanha eleitoral — de quem Pedro Nuno Santos foi um antigo apoiante.

Por outro lado, fez bem em chamar Passos Coelho para discursar no Algarve sobre a imigração porque este tema é relevante para os eleitores desta região. O mesmo se diga sobre Beja e o restante Alentejo que têm cada vez mais imigrantes ilegais que são trazidos por redes criminosas de tráfico de pessoas.

É verdade que não há uma relação direta entre a imigração e a criminalidade, segundo os relatórios da segurança interna. Mas há uma relação entre criminalidade organizada de redes que exploram o tráfico de pessoas e a imigração ilegal.

O mais relevante, contudo, é o facto de o discurso de Passos Coelho ter mostrado aos algarvios e aos alentejanos que a AD está atenta ao problema e acompanha as suas preocupações. Essa deve ser uma das principais preocupações do poder político: acompanhar de perto os anseios e os receios dos cidadãos e encontrar soluções para os seus problemas.

Seguindo o exemplo da revista de imprensa de António Costa, basta ver esta capa do Público de 24 de fevereiro (abaixo reproduzida) para percebermos que perigosos órgãos de comunicação social extermistas (e certamente próximos do Chega), como o Público, associam a temática da imigração na sua primeira página a “caos”, a “descontrolo” mas também ao “desemprego” e ao “consumo de drogas”. Imagine-se que teria sido outro jornal a fazer estas reportagens?

A temática da imigração existe na nossa comunidade e acarreta problemas que têm de ser encarados de frente, seja ao nível da integração social e cultural, seja ao nível económico e ao nível dos direitos humanos.

É verdade que o maior problema eleitoral para a AD foi a questão de um novo referendo sobre o aborto — levada para a campanha por Paulo Núncio, do CDS. É uma asneira política falar deste tema em campanha eleitoral por várias razões:

  • porque é um assunto que está encerrado há muito tempo;
  • e porque o tema divide a própria direita, entre conservadores e liberais, católicos e não católicos.

Mas as tendências reveladas pelas sondagens da TVI/CNN Portugal, da SIC/Expresso, da Universidade Católica e da Intercampus revelaram que a AD resistiu bem a esse ‘fogo amigo’ e teve um crescimento sustentado ao longo de toda a campanha.

Obviamente que temos que olhar para as sondagens com desconfiança e apenas como uma tendência — e não uma garantia absoluta de vitória de quem vai à frente.

5 Contudo, há outro indicador de que a campanha está a correr bem à AD. É que André Ventura parece desesperado nestes últimos dias de campanha, atirando a tudo e a todos, colocando em causa a transparência do processo eleitoral e insinuando alegados acordos com a AD defendidos por alegadas ‘forças vivas’ influentes no PSD.

A explicação para tanto disparate é fácil de explicar: a tendência de descida do Chega na tracking poll da TVI/CNN Portugal e as notícias sobre a alegada falta de transparência do financiamento do partido.

Um partido como a Chega, que baseia a sua narrativa política na transparência e do combate à corrupção, tem um problema sério quando são criadas dúvidas sobre o seu financiamento, sobre discrepâncias que podem chegar aos 100 mil euros e sobre a identidade de alegados doadores ser desconhecida.

O pior, contudo, foi a tentativa de André Ventura de lançar o boato de que as “forças vivas” do PSD são a favor de uma coligação com o Chega. Não é a primeira que o faz ao longo desta campanha, mas isso só comprova como a estratégia do “não é não” foi eficiente em termos eleitorais. Se não tivesse sido, Ventura não estaria a perder tempo a tentar destruir a sua eficácia.

Apesar do seu insucesso, mesmo assim André Ventura teve a ajuda de muitos comentadores conotados com o PS, Bloco de Esquerda e PCP.

É extraordinário como André Ventura é uma espécie de boneco nas mãos da esquerda. Umas vezes é “aldrabão” porque mente com todos os dentes que tem. Outras vezes é uma espécie de santo padroeiro porque inventa uma treta que é tratada pela esquerda como verdade — porque pura e simples lhes dá jeito.

6 O que me leva ao meu último ponto: o mau perder da esquerda. Em 2015, António Costa inventou a teoria dos muros para chegar ao poder através de uma aliança com a extrema-esquerda. O PS quebrou uma regra não escrita e impediu o partido vencedor de governar.

Agora, e como nenhuma sondagem dá a maioria absoluta à geringonça — mesmo com o Livre e com o PAN — inventou-se a teoria dos três blocos: o da esquerda (PS/BE/PCP/Livre e PAN), o da direita (AD/IL) e o Chega.

Uma vez mais, a teoria é meramente utilitária e serve essencialmente para manter a esquerda no poder. Como? Em primeiro lugar, tentando dividir o bloco da direita para que o Chega fique isolado e não conte absolutamente para nada. E, em segundo lugar, criar uma situação em que soma dos deputados do bloco da esquerda suplante os do bloco da direita.

Foi por isso que Pedro Nuno Santos disse a determinada altura da campanha, nos arredores de Évora, que “até ver, os partidos os partidos de esquerda juntos têm mais do que a AD e a IL”.

Ou seja, caso a AD e a IL não tenham mais voto do que a esquerda toda a junta, isso retirará legitimidade ao centro-direita.

Pior: essa ideia de alegada falta de legitimidade poderia ser colocada em prática num contexto em que o PSD, CDS e a IL devem subir a sua votação face a 2022 e o PS e a CDU devem descer de forma significativa, com o bloco da esquerda apenas a ter reforço ligeiro de votação no BE e no Livre. Só um emoji com os olhos revirados para cima ajuda a explicar o nonsense desta teoria.

Por outro lado, a teoria só tem validade com uma de duas:

  • ou o Chega vota ao lado do bloco da esquerda — o que é altamente improvável, até para a própria sobrevivência do Chega junto do seu eleitorado de direita;
  • ou é como se os deputados (e os eleitores que votaram no Chega) não existissem — o que diz muito do espírito democrático de quem defende estas teorias.

7 Desenvolvendo este último ponto, como é possível ignorar um partido que pode chegar perto de 1 milhão de votos? Como é possível conseguir sequer pensar que é possível ignorar o Chega, um partido que, no mínimo, se arrisca a quase duplicar os seus votos e a mais do que duplicar o seu número de deputados?

Os estudos de opinião que têm resultados do perfil do eleitor de cada partido revelam que o Chega é um partido com as seguintes características:

  • é intergeracional — ou seja, têm uma presença em todas as faixas etárias, tendo subido muito junto dos primeiros eleitores;
  • é interclassista — tem eleitores em todas as classes sociais, tanto os mais pobres, como os mais ricos;
  • É interegional — deve eleger em quase todos os círculos eleitorais, o que deve revelar que já não é apenas um partido a sul do Mondego;
  • e é interideológico — ganha eleitores a todos os partidos, desde o PCP até à IL.

É por tudo isto que a AD, e bem, tem feito nos últimos dias — e vai intensificar até 6.ª feira — apelos sucessivos ao voto útil à direita para roubar o máximo possível de votos ao Chega. Luís Montenegro ignora André Ventura mas fala diretamente para os seus eleitores.

Por outro lado, a AD está a tentar também conquistar parte do eleitorado flutuante que votou PS em 2022 — e deu a maioria absoluta a António Costa — e, segundo algumas sondagens internas dos partidos, se terá transferido para o Chega.

A lógica é simples: quanto mais baixo for o voto do Chega, melhor será o resultado da AD e mais provável será que a cara da mudança seja Luís Montenegro.

O que não significa que a AD tenha de ignorar o Chega no pós-10 de março. Com toda a certeza que não contará com Ventura para o Governo mas pode ter entendimento parlamentar em matérias específicas, como defendi aqui na semana passada.

Veremos o que os portugueses vão decidir no próximo domingo — numas eleições que se querem competitivas, transparentes, justas e muito participadas.

Texto alterado às 9h45