A ameaça do populismo e da hiperpolarização tem sido muito comentada do ponto de vista do perigo que representam para o futuro dos regimes democráticos pluralistas. Tem se falado menos sobre o seu impacto negativo nas relações entre Estados. As recentes eleições no Brasil e as eleições intercalares da próxima semana nos EUA são uma boa ocasião.

Os perigos do populismo

Por vezes parece que populista é um qualquer político popular de que não gostamos. É uma definição apetecível, mas, evidentemente, sem qualquer rigor. Felizmente já vai abundando a literatura sobre o assunto, inclusive bons escritos recentes em português, como o livro de José Pedro Zuquete.

Considero que há dois traços diferenciadores do populismo. O primeiro ao nível da retórica, muitas vezes desvalorizada, erradamente, pois as nossas comunidades políticas são feitas e desfeitas por histórias que moldam a nossa identidade. A retórica populista passa pela insistência na distinção entre o verdadeiro povo e as falsas elites, entre bons nacionais e maus cosmopolitas. O segundo traço fundamental do populismo prático resulta de o líder populista considerar que ele é a única voz do povo, pelo que quaisquer limites legais ou institucionais à sua ação são barreiras ilegítimas, forças do bloqueio das elites. Claro que certos traços populistas podem aparecer em qualquer regime e em qualquer líder nalguns momentos, mas o populismo puro e duro é definido pela permanência destes dois aspetos e é estruturalmente iliberal, intolerante, avesso a normas e instituições.

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O populismo alimenta-se e acentua a dinâmica de hiperpolarização em que o outro lado não é visto como um adversário com ideais e programas questionáveis, mas como um inimigo do povo que tem de ser derrotado. De Bolsonaro a Trump, de Chávez a Putin é fácil perceber o peso crescente deste tipo de figuras nas últimas duas décadas. E a Europa também não escapa a esta tendência, com Viktor Órban como o melhor exemplo. Qual é o problema?

O problema populista na política externa

O populismo e a hiperpolarização chocam com princípios e práticas indispensáveis numa democracia pluralista, como, por exemplo, o reconhecimento de uma derrota eleitoral. Além do risco que isto representa para um dos pilares de uma democracia, a alternância pacífica no poder, essa postura cria obstáculos às boas relações dos países democráticos ocidentais com esses líderes. Mas o problema não é apenas esse.

Os líderes populistas apresentam-se como defensores do povo contra um Mundo ameaçador. Apostam também numa retórica de bodes expiatórios para quaisquer problemas, e estes, ao longo da história, por regra são estrangeiros. Foi assim com os mexicanos de Trump, com os globalistas de Bolsonaro, com os norte-americanos de Chávez ou Putin. Mais, o populismo rejeita o compromisso e a negociação pois na defesa do povo qualquer cedência é uma traição.

A crescente difusão global do populismo – em reação a queixas reais e imaginárias, a crises sucessivas, e alguns erros e abusos das elites – não sendo universal ou imparável, é mais uma razão pela qual o Mundo se tem tornado um lugar cada vez mais conflituoso e perigoso.

O Brasil e os EUA

Esta crescente polarização não começou com a direita, com Trump ou com Bolsonaro. Há uma forte tradição populista na cultura política norte-americana e brasileira. O termo populismo tem origem na história política norte-americana, no Populist Party, cujo candidato presidencial, em 1896, foi o carismático esquerdista William Jennings Bryan. No Partido Democrático norte-americano, começando com a sua origem distante com Andrew Jackson, o general do povo, no início do século XIX, há traços ocasionais, sobretudo quando na oposição, de retórico populista. No Brasil basta pensar no papel de Getúlio Vargas no século XX brasileiro, tendo sido o único político – até Lula – que ocupou a presidência por duas vezes em períodos distintos. Primeiro entre 1930-1945, dando um autogolpe, em 1937, para assumir poderes autoritários em nome da defesa do povo. Depois, como resultado da sua vitória nas presidenciais de 1950, regressou ao poder. E até o seu suicídio, em 1954, foi um ato populista, apresentado como a única forma que ainda tinha de defender o povo de elites corruptas. O próprio Partido dos Trabalhadores, desde a sua fundação, em 1980, recuperou parte dessa tradição populista, o que ajuda a explicar algum do seu sectarismo, e, inclusive a recusa em fazer um mea culpa relativamente aos casos de corrupção como o Petrolão, apresentando a sua repressão judicial como nada mais do que uma conspiração elitista.

Dito isto não há dúvida de que Donald Trump e Jair Bolsonaro foram muito mais longe do que os seus antecessores, na retórica e na prática, alimentando constantes tensões com tribunais e outras instituições, e, por vezes, com os seus próprios ministros. Adotaram, também, uma política externa muito mais ideológica e conflituosa. Biden e Lula, até pela sua idade e veterania, encarnaram a esperança de um regresso a um passado político mais previsível. Estão por definição condenados a desiludir. Não há regressos ao passado, exceto nos filmes. E lideram agora países altamente polarizados e lidam com um contexto internacional muito alterado e mais conflituoso.

As instituições democráticas dos EUA e do Brasil estão a enfrentar uma ameaça iliberal muito séria, e seria errado pensar que ela está definitivamente derrotada. Dito isto há que reconhecer que as instituições brasileiras se têm mostrado mais eficazes na resposta a este desafio do que as norte-americanas. Esperemos que continue a ser assim. Quando se trata de atenuar os riscos do populismo iliberal talvez haja vantagens da política no Brasil ser mais elitista e ter maior fragmentação partidária.

Lula é visto como um interlocutor mais fiável do que Bolsonaro a nível global. Prova disso: já falou com mais de 20 líderes mundiais e foi convidado para a próxima cimeira do clima, sem ter tomado posse. Lula não poderá corresponder a todas as expectativas contraditórias que o rodeiam, a nível interno e externo. Será fácil, apesar de tudo, corresponder à expectativa de na ação externa ser melhor e mais previsível do que Bolsonaro. Teremos de ver, também, que peso terão os populistas pró-Trump no Congresso norte-americano com que o resto do planeta terá de lidar a partir do próximo ano. O que parece certo é que está para durar o desafio do populismo num Mundo desenraizado e que tem enfrentado crises sucessivas.