A Cimeira do Alasca pode ter mudado tudo. A administração Biden parecia convencida que o maior rival dos Estados Unidos era a Rússia, mas a diatribe chinesa terá sido o sinal de alarme que mudou as circunstâncias. Certo é que, desde aí, já ninguém tem dúvidas de que Pequim é o adversário sistémico de Washington. Biden afirma-o vezes sem conta num tom cada vez mais contundente.

E a verdade é que quem tem um adversário sistémico tem de ter uma política externa global para o enfrentar. Não há outra forma. Biden veio à Europa tentar pôr em prática a narrativa central desta administração. Cito: “Estamos numa competição, não com a China per si, mas com os autocratas e os governos autocráticos do mundo para saber se as democracias podem competir com eles num século XXI de mudança vertiginosa”. Não é preciso fazer muitas contas: não é a China per se (é o regime chinês) mas a China per se é a única autocracia que tem capacidade para derrotar os Estados Unidos nesta transição de poder. Esta é a narrativa americana. Uma narrativa que assusta os aliados, mas talvez a única que tenha sentido numa rivalidade desta natureza.

Acompanhando a narrativa há uma estratégia de bipolarização do sistema internacional. Antes da visita, parecia claro que Biden encabeçava um “mundo livre” que se esforçava por trazer para a sua esfera política para combater as autocracias. Desta semana resulta um ajuste estratégico. A administração americana quer reunir as democracias em torno da sua liderança, mas quer também tentar isolar a China o mais que puder.

E a verdade é que o périplo europeu teve algum êxito nesse objetivo. Na Cimeira do G7, apesar das afirmações de alguns líderes europeus com o objetivo de aplacar Pequim, o presidente norte-americano conseguiu três coisas. Referir a China como challenger do clube das democracias mais ricas (em comunicado oficial) e fazer aprovar dois projetos de distribuição de bens comuns internacionais, um de vacinas contra a covid-19, outro de apoio a infraestruturas para países mais carenciados. Neste último, ainda há muito que discutir, mas ambos demonstram que a América quer entrar em domínio, até agora, quase completamente chinês.

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Na Cimeira da NATO, a Rússia praticamente desapareceu – em nome, é certo, porque muito se falou de ameaças híbridas pelas quais Moscovo se tornou famosa – e foi substituída por três ameaças centrais: as alterações climáticas, os desafios tecnológicos e a ascensão… da China e o seu “desafio sistemático”. Parte da razões da omissão da Rússia poderá ter sido a proximidade da Cimeira de Genebra. Mas estes temas ficarão consagrados na estratégia de Segurança da Aliança Atlântica que vai começar a ser escrita em consequência desta Cimeira. Pela primeira vez desde 1949, a ameaça central é outro país que não a Rússia e as principais preocupações, especialmente a do avanço tecnológico, estão intimamente ligadas com a autocracia tecnológica (estas palavras são minhas) e os avanços que a tecnologia pode trazer às forças militares. Certo é que em termos de segurança a relação transatlântica entrou numa nova fase. E nesta matéria não houve muitas queixas europeias, ainda que saibamos que este equilíbrio é frágil.

A surpresa maior veio da Cimeira de Genebra. Biden e Putin reuniram-se para baixar as tensões entre os dois países, mas o significado deste encontro foi para além disso. As “linhas vermelhas” traçadas pelo presidente americano são uma espécie de código de conduta que a Rússia tem de cumprir. A saber: parar os ciberataques; não resolver disputas relativamente à Ucrânia e à Bielorrússia através de meios militares; e manter Alexei Navalny vivo. Em troca Biden atribuiu a Putin a categoria de “grande potência”, o que lhe dá o direito de fazer o que bem entender na sua esfera de influência. O que cria a possibilidade de uma relacionamento estável se cada um se mantiver nos seus afazeres. Ao contrário da China que mantém o estatuto de “ameaça”, “desafio” e até de “rival”. Diferenciando Moscovo de Pequim, Biden isola a China num estatuto único para onde convergirá toda a sua energia defensiva e ofensiva.

Pequim tem vindo a perceber a estratégia norte-americana. O mês passado, um porta-voz da China queixou-se de que o QUAD (Diálogo de Segurança Quadrilateral entre Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia) era a “NATO do Pacífico”. Esta semana, o porta-voz da Embaixada chinesa em Londres declarou que a Cimeira do G7 está a “expor as intenções sinistras de um punhado de países, incluindo os Estados Unidos”. Afinal, os Estados Unidos querem reunir uma “frente unida” contra Pequim para “criar artificialmente confrontação e fricção”. A prova de que a estratégia está a resultar é precisamente esta: a China, sempre impávida relativamente ao comportamento alheio, parece não resistir mais na sua defesa (por enquanto retórica) contra a América.

A China acertou. A narrativa norte-americana serve vários objetivos: unidade interna (perante um inimigo comum), unidade entre o “mundo livre” (perante uma autocracia que ameaça a nossa forma de vida), um aviso às autocracias que os Estados Unidos estão “de volta”. Mas a narrativa norte-americana tem como objetivo central a bipolarização do sistema internacional. Uma bipolarização moral (há bons e maus ou, se preferirem, melhores e piores) e uma bipolarização geopolítica, que permite mobilizar aliados regionais e dividir custos e tarefas. Ainda hegemónica, pelo menos de certa forma, a América aprendeu a lição da sobre-extensão e diz amiúde que sozinha já não chega lá.

A narrativa norte-americana e a sua política externa parecem sólidas e acompanhadas de vontade política. Biden sabe que para vencer a China nesta competição sistémica precisa de tempo, paciência, e deixar ao seu predecessor uma ordem internacional e estratégia concretas que permitam travar a guerra de transição de poder em curso. Veio à Europa tentar colocar os atores centrais deste lado do Atlântico no local onde precisa deles. Fê-lo com mestria. Agora é preciso não esquecer que os equilíbrios que começou a construir são frágeis. Têm de ser sedimentados. Foi um bom começo. Mas, à mínima desatenção, muito pode cair por terra.