Em 2015, a geringonça tinha um objectivo: impedir as “reformas estruturais”. Todos os organismos internacionais as recomendavam para pôr a economia portuguesa a convergir com a UE. Mas para PS, PCP e BE, tinham este senão: iriam diminuir o peso e o poder do Estado, e por isso ameaçar o domínio que, através do Estado, os sócios da geringonça exercem sobre o país. O resultado foram seis anos de estagnação económica, dependência financeira externa, e degradação dos serviços públicos, a começar pelo SNS (esta semana, as demissões foram no hospital de Santa Maria).

No início, porém, a geringonça prometia uma coisa boa: clareza na política. A partir da geringonça, ou governava toda a esquerda, e não havia reformas, ou governava toda a direita, e havia reformas. Infelizmente, a clareza não durou. O CDS de Assunção Cristas e, desde 2018, o PSD de Rui Rio convenceram-se que Portugal era socialista e que, para voltarem ao poder, precisavam de imitar ou aproximar-se da esquerda: tivemos assim os votos com a Fenprof e os acordos propostos ao PS. Estavam certos? Não estavam. Nas eleições de 2019, PSD e CDS tiveram dos piores resultados de sempre, multiplicaram-se os partidos à direita, e a abstenção aumentou. A causa do reformismo em Portugal pareceu indefinidamente comprometida.

As eleições antecipadas, depois do impasse em que tombou a geringonça, podiam ter restabelecido a clareza. O CDS, com Francisco Rodrigues dos Santos, já mudara; o PSD, com Paulo Rangel, podia mudar. Acontece que a data das eleições perturbou a clarificação nos dois partidos. Bastou acrescentar algumas sondagens para a confusão florir. De repente, toda a gente fala de um futuro feito de “acordos” entre PS e PSD: os oligarcas socialistas, Rui Rio, e, segundo as correntes de ar jornalísticas que há no palácio de Belém, também o presidente.

Vamos entender-nos: seria um desastre. Seria um desastre, em primeiro lugar, porque a matéria de acordos entre PS e PSD pouco poderia ir além dos equilíbrios orçamentais destinados a garantir o financiamento externo e o consumo do PRR. Mas basta isso ao país? Não basta, como vimos desde 2015. O país precisa de reformas, mas o PS nunca as aceitará, como nunca as aceitou. Em 1985, o Bloco Central caiu por várias razões, mas também porque o PS recusou sempre as “reformas  estruturais” que Mota Pinto pedia dia sim, dia não. Entre 1997 e 1999, o PSD deixou passar os orçamentos do PS por causa do Euro, e o que aconteceu foi Portugal entrar na moeda única sem as adaptações necessárias para prevenir a estagnação económica. Agora não seria diferente.

Mas um regime de acordos teria ainda outra consequência: o caos político. PS e PSD não estão em 1983, nem em 1997. Em 1983, tinham um inimigo comum, o presidente Eanes. Em 1997, na ressaca da queda do muro, a esquerda parecia conformada com os mercados. Tudo agora é outra coisa. A esquerda está animada por um novo anti-capitalismo e pelo culto woke; a direita, pela contestação dessas tendências. Repararam nas convulsões de ódio de deputados do PS como Isabel Moreira contra quem não aprovou a eutanásia? Viram a indignação da direita com a perseguição à família Mesquita Guimarães? Imaginam esses sentimentos a coexistir harmoniosamente? Desde os anos 1970 que nunca a divisão ideológica foi tão marcante. Assentar o governo em acordos entre PS e PSD, ignorando essa falha sísmica, servirá apenas para sujeitar o país a uma vertigem permanente de incerteza e de instabilidade. Teríamos uma crise de manhã e outra à tarde. Não há qualquer vantagem em passar da geringonça à mixórdia. Haja juízo.

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