Lê-se, num artigo do jornal i, que o PS já definiu um plano para o futuro: renovar os laços que ligam a geringonça, preferindo os socialistas uma maioria relativa (que justifique acordos com PCP e BE) a uma vitória por maioria absoluta (que isole o PS na governação) – cenário que, a acreditar nas sondagens, é teoricamente acessível. Seria ingénuo interpretar esta ambição invertida (desejar menos votos do que mais votos) como uma excentricidade estratégica. Ou, sequer, acreditar que esse futuro se limita às próximas eleições legislativas. Está em causa algo com muito maior alcance. O PS percebeu que a geringonça, nascida de forma circunstancial face à insuficiência do resultado eleitoral do PS em 2015, tem um enorme potencial estrutural: enquanto funcionar, eternizará o PS no poder. E, portanto, não é para repetir só em 2019 – será para renovar sempre.

Esta fórmula de poder perpétuo, que tem tudo para funcionar, impõe três lições sobre este novo tempo político. A primeira é que se tornou consensual que o verdadeiro poder político não está no parlamento – se estivesse, o PS ficaria entusiasmado pela possibilidade de obter uma maioria absoluta e libertar-se dos parceiros à esquerda. Ou seja, assume-se que, num país centralizado e pendurado no Estado, o controlo da máquina estatal define quem detém o poder. E, nesse sentido, o PS sozinho nunca conseguiria esse domínio, ficando nas mãos sindicais da CGTP ou dos sectores da administração central controlados pelo PCP e pelo BE, que bloqueariam as suas iniciativas. Ora, num contexto de geringonça, todas as portas se abrem.

A segunda é o reconhecimento utilitário de que, tendo PCP e BE ao seu lado, o PS esvazia a oposição política a um governo seu. Desde logo, pelas razões óbvias: os partidos mais à esquerda gerem a “rua” e definem os níveis de contestação social, podendo impor o caos ou estabelecer a paz. A “descrispação” que Marcelo saudou como vitória política resulta artificialmente desse monopólio da contestação social que PCP e BE detêm – ou seja, o ambiente social é gerado pelas conveniências desses partidos e tê-los do lado do governo é proteger o PS do desgaste da governação. Além disso, no debate parlamentar, durante décadas perdurou o entendimento de que a oposição estava a reboque de PCP e BE, partidos de protesto cuja especialidade era sovar ministros no plenário da Assembleia da República. PS e PSD habituaram-se a fazer oposição de mãos nos bolsos, à espera que chegasse a sua vez de regressar a São Bento. Ora, agora que PCP e BE trocaram as críticas ao governo pelas ovações, a direita ficou dependente de si própria na luta parlamentar – e não sabe o que fazer.

A terceira lição é que o tempo das reformas acabou. Não é possível reformar e modernizar o país enquanto, simultaneamente, se acerta a agenda com PCP e BE, satisfazendo as suas clientelas sindicais e evitando hostilizar o seu posicionamento ideológico. PCP e BE, nomeadamente através do braço da CGTP, constituem as forças políticas mais resistentes à mudança. Isso é absolutamente claro nas matérias laborais ou nos assuntos europeus. Mas não só. Por exemplo, convém não esquecer que, na educação, as políticas públicas que, nos últimos 15 anos, sustentaram a melhoria de desempenhos dos alunos nas avaliações internacionais foram todas implementadas contra esses partidos e os seus agentes educativos. Com mais ou com menos reversões, um futuro com geringonça arrisca-se a ter um horizonte de estagnação.

No meio da sua desorientação, a direita deveria dedicar algum tempo a estas três lições para, a partir delas, orientar a sua actuação. Consentir que, contra uma esquerda unida, não irá a lado nenhum mantendo-se separada. Perceber que não basta o parlamento e que, sem se enraizar na sociedade civil, na administração pública ou nas estruturas sindicais, continuará sem força política. Entender que, sendo a geringonça uma força de bloqueio, a direita tem a oportunidade de se assumir como motor reformista do país – e, portanto, formar alternativa na apresentação de ideias inovadoras por sector, com bons think tanks ou até um governo sombra. E aceitar que, no contexto parlamentar, terá de começar a sujar as mãos e trabalhar mais. Já era tempo.

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