Uma família em isolamento, dia 76

Está tudo bem. Não há drama nenhum. Não será um problema ainda maior do que tem sido até aqui. Não é uma queixa, não é um desabafo, não é uma tomada de posição. Não deve ser lido com ponto de exclamação no fim, como quem brada “Já disse e repito que a minha filha não regressa à escola na segunda-feira!” E também não deve ser lido como queixume, com reticências murchas, como quem lamenta que “Infelizmente a minha filha não regressa à escola na segunda-feira…”

É apenas uma constatação. Depois de muito ponderarmos, analisarmos, refletirmos, consultarmos algumas pessoas, auscultarmos a opinião de outros pais e perguntado à própria, eu e a minha mulher decidimos que a nossa filha não regressa à escola na segunda-feira. E a Madalena, que tem 6 anos, concorda.

O nosso dilema foi o dilema de milhares de famílias pelo país fora e as nossas dúvidas juntam-se ao coro de vozes que não sabe ao certo se está a fazer bem ou mal. Na última semana, as mensagens no WhatsApp do grupo de pais de colegas da nossa filha espelhava isso bem. Não tenho números e muito menos acesso aos conteúdos das mensagens (vamos acreditar que ninguém tem e que a encriptação é total), mas aposto que, nos últimos dias, por todo o país, a plataforma terá sido palco de muitas angústias e incertezas sobre o que aí vem.

Uns vão mandar os filhos para a escola e estão bastante decididos quanto a isso, outros não o vão fazer e não têm grandes dilemas. E alguns estão ainda indecisos. “Como é que vocês vão fazer” deve ter sido pergunta que se ouviu muitas vezes em chamadas entre pais ao longo da última semana. E se e, algumas situações as conversas com os pediatras, psicólogos e professores poderá ter ajudado a dissipar dúvidas, noutras nem por isso.

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Se o critério fosse apenas a sanidade mental dos adultos e a necessidade de teletrabalharem em condições, nem que fosse por períodos de uma hora ou duas, sem estarem sempre a ser interrompidos ou a tomar conta dos filhos ou a ajudar nos TPC dos mais novos, decerto que todos quereriam mandar as crias para o jardim de infância. Rapidamente e em força de volta para as educadoras.

Mas há mais variáveis.

Muitos pais não vão sujeitar os filhos a limitações de espaço físico e contacto com outras crianças num sítio onde a experimentação e o toque e a brincadeira são parte ativa do processo de desenvolvimento. Para eles, isso simplesmente não faz sentido.

Muitos outros, porém, acreditam que sim, que isso faz sentido. Porque é bem possível que um regresso à antiga normalidade não ocorra tão depressa. É bem possível que a distância social e a constante higienização e as brincadeiras mais separadas passem a fazer parte das dinâmicas daqui para o futuro. É bem possível que todas as medidas que as creches adoptaram desde o dia 18 e que todos os jardins de infância irão adoptar a partir de segunda-feira, num esforço incrível de coordenação e preparação, se tornem o tão afamado “novo normal”.

As famílias que têm consciência disso são também as que acreditam que os filhos devem sair, brincar, estar com outras crianças, ver outros rostos, ouvir outras vozes e sentir outros estímulos, mesmo que seja com algumas limitações, para além dos telemóveis e da televisão de que se têm socorrido tantas vezes nas últimas semanas.

No meio disto, convém não esquecer que muita gente pura e simplesmente não se pode dar ao luxo de ter dilemas desta natureza. Dia 1 de junho terminam os apoios sociais para famílias com filhos em idade pré-escolar e deixam assim de ter condições financeiras e justificação perante as suas empresas para continuar em casa. E mesmo que o teletrabalho continue a ser uma possibilidade, o dinheiro que ajudava a equilibrar contas vai deixar de existir. Para esses pais, não há grandes dúvidas.

E há também os outros. Os que não concordam ou não querem que os filhos regressem à escola e por isso socorrem-se dos avós para esse apoio. Os avós que estavam a sofrer por não ver os netos, sim, os mesmos avós que já diziam “antes a Covid do que estar para aqui isolado e sem ver a família”, é verdade. Mas são os mesmos avós que durante meses tentámos proteger por fazerem parte de um grupo de risco e que agora vão estar mais expostos.

Cada caso é um caso e cada família é uma família. Com as suas dinâmicas, idiossincrasias, dificuldades e estímulos. E nesta família chegámos à conclusão que isto era o melhor. É que além de uma Madalena de 6 anos que frequenta o pré-escolar e que poderia regressar ao convívio com as educadoras e alguns colegas a partir de segunda-feira, há uma Carolina de 7 anos que frequenta o segundo ano e que não poderá regressar ao convívio com a professora e colegas nesta terceira fase de desconfinamento. Ou seja, manter a mais nova em casa nesta altura é a decisão que provoca menos desequilíbrio logístico e emocional nesta família.

Isto já custa o que custa. Sou eu que estou sozinho em casa com elas durante o dia e por vezes trepo paredes e grito e esbracejo e hiperventilo para conseguir dar-lhes dar atenção, ajudar nos TPC, mantê-las entretidas, focadas, alimentadas e saudáveis. Tudo isso enquanto tento trabalhar e procuro momentos de concentração ao longo do dia – coisa impossível de fazer e por isso preciso das noites para despachar trabalho. Estes tempos já sãosuficientemente desafiantes, a ponto de estar preocupado com a minha saúde mental (e das minhas filhas) e precisar de vinho para ajudar a engolir os desafios diários.

Ora, se em cima disto ainda tenho de levar e/ou trazer a cria mais nova enquanto coloco a mais velha no carro, roubando ainda mais tempo precioso a tudo o que tem de ser feito ao longo do dia, a coisa fica francamente mais difícil de gerir. Porque além da logística, depois ainda fico com uma criança de 7 anos que se vê privada da companhia de brincadeiras habitual da irmã. E ainda que acabassem as discussões entre elas e os momentos em que tenho de intervir para pôr termo a quezílias e separar duas crianças demasiado enérgicas e há demasiado tempo fechadas em casa, as desvantagens de uma medida destas seriam francamente maiores.

Além disso – e isto não é um pormenor – a Madalena mais nova está bastante relaxada com a ideia de continuar em casa e não tem manifestado grande interesse em regressar à escola. Não lhe identificamos sinais de alarme nem parece estar a deprimir. Por enquanto…

Os ginásios vão reabrir, as missas vão voltar a ser celebradas, os centros comerciais e lojas com mais de quatrocentos metros quadrados abrem portas, onde antes se juntavam dez já se vão poder juntar vinte (menos na região de Lisboa, por causa dos dois surtos identificados). Mas esta gradual retoma não contemplou por agora os alunos entre o primeiro e o décimo ano.

As escolas continuam fechadas, o que significa que as crianças continuam em casa, o que significa que os pais têm de continuar em casa também, o que significa que o teletrabalho continua a ser essencial para quem tem filhos com menos de 12 anos – e as empresas têm de aceitar isto, está na lei. O que significa que milhares de pessoas vão continuar a bater com a cabeça nas paredes e atentar fazer malabarismo entre as responsabilidades parentais e as obrigações profissionais.

Eu vou ser um deles. Sem grandes dramas na decisão de manter a mais nova em casa. Mas com os dramas do costume na gestão de tudo isto.

 

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

 

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro

Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio

Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril

Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?

Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso

Dia 62. As pequenas vitórias que nos passam ao lado

Dia 69. Como combater a fadiga do Zoom e dos filhos? Com vinho