Uma família em isolamento, dia 69

“Combinado, até à próxima. Já vos envio o tal e-mail. Agora tenho mesmo de ir porque vou para outra reunião que já está a começar.”

São 15h40,carrego no botão vermelho que diz “leave meeting” e baixo o monitor do computador portátil. Acabou mais uma reunião por Zoom e sinto a vista cansada. Esfrego os olhos, respiro fundo, preparo-me mentalmente para a próxima. Apetece-me tanto um copo de vinho.

É verdade que vem aí outra videoconferência, é mentira que esteja já a começar. Tive de dizer isto para garantir uns minutos de intervalo entre reuniões, ao contrário do que aconteceu com as três anteriores que vieram de rajada.

O ideal seria dar uns passos, respirar fundo, ir à varanda, comer qualquer coisa de jeito para compensar o almoço que não tive tempo de saborear com as minhas filhas, substituído pela sandes de queijo que preparei à pressa quando disse que tinha de ir à casa de banho na terceira reunião – e que comi às escondidas de cada vez que apontava a câmara noutra direção ou me afastava ligeiramente. Acho que não fui suficientemente discreto e que me viram, mas já pouco me importa. Também vi dois professores a comer, as pernas peludas de um advogado – com quem precisei de falar e que se levantou para ir buscar um documento, revelando que estava de calções – e as duas cervejas que uma entrevistada bebeu enquantofalávamos.

Na verdade eu invejei aquelas cervejas. O álcool tem sido um bom escape para ajudar a enfrentar os dias da pandemia, do medo, do confinamento e agora do desconfinamento, das reuniões à distância, das escolas fechadas e das crianças em casa. Mas ainda não são seis horas e essa é a hora que estabeleci para começar a beber em casa.

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Vou ao quarto e troco a t-shirt por uma camisa para ficar com um ar mais composto. Os participantes desta reunião, a quarta desta tarde, são diferentes, o assunto é diferente. Preciso de outro outfit. Ainda assim, deixo-me ficar com calças de pijama e junto-me à four o’clock sharp meeting. Esta vai  ser em inglês. E pelo Teams. Porreiro! Não bastava a maratona de reuniões, ainda tenho de saltar de plataforma, mudar de língua, familiarizar-me com os menus nos primeiros minutos, tentar não parecer muito atrapalhado quando precisar de partilhar documentos e, sobretudo, não trocar os nomes de ninguém. Se as minhas filhas não fizerem nenhum disparate entretanto e eu não soltar um palavrão com o microfone ligado, está tudo bem. O meu cérebro continua a funcionar.

Antigamente, quando as pessoas se reuniam presencialmente – antes da Covid, lembram-se como era? – tínhamos de caminhar um pouco de uma sala para outra. Entretanto a cabeça descansava, a circulação era ativada, podíamos organizar as ideias, rever apontamentos no corredor ou no elevador, lembrar quem estaria presente no compromisso seguinte e, com um pouco de sorte, ainda bebíamos um café com alguém junto à máquina ou alinhávamos estratégias perto da fotocopiadora. Agora tudo isso acabou. Acaba uma reunião, começa outra, baralhamos assuntos, nomes, datas. E cansamo-nos muito mais.

Esta reunião é uma chatice pegada e, honestamente, era mais uma daquelas que podia ter sido um e-mail ou um powerpoint piroso, daqueles que a malta das grandes empresas gosta de passar a vida a fazer. Agora é que aquele copo de vinho vinha mesmo a calhar. Enquanto alguém debita números e fala de orçamentos, dou por mim a pensar que estou farto de ver a minha cara emoldurada em pequenos quadrados. E decido que, na próxima reunião, vou colocar o computador em cima de uns livros para não me apanhar a queixada. Por falar em livros, tenho de arrumar aqueles atrás de mim. Aquilo dá mau aspecto nas videoconferências e toda a gente consegue ver. O melhor é virar ligeiramente o computador para mudar o ângulo.

São quatro e meia quando isto termina. Era a hora marcada para acabar e esta malta estrangeira não brinca. Depressa, vem aí outra reunião. Vou rapidamente espreitar as filhas e confirmar que está tudo bem. Não as ouço vai para meia hora e isso só pode significar sarilho. Reclamo quando entram pela sala adentro aos gritos a meio de uma reunião, preocupo-me quando não entram pela sala adentro aos gritos a meio de uma reunião. Hoje já aconteceu, claro. Já acalmei ânimos porque uma bateu na outra, já procurei a borracha amarela porque nenhuma das seis borrachas restantes podia servir para apagar coisas naquele caderno, já fui juiz e proferi uma sentença sobre quem pode segurar o comando à distância durante os próximos desenhos animados, já limpei o chão da casa de banho duas vezes porque as Barbies e os bonecos Pinypon ”foram à piscina no bidé e salpicaram tudo”.

Esta tarde, para conseguir trabalhar, dei folga de TPC à filha mais velha e disse à mais nova que não precisava de fazer nada no caderno de atividades. Com 6 e 7 anos, há mais de dois meses que estas miúdas não vão à escola. E há mais de dois meses que eu hiperventilo quase diariamente com toda a atenção que preciso de lhes dar enquanto tento trabalhar nos intervalos da brincadeira, da preparação das refeições, das refeições, da ajuda nos trabalhos da escola e de tudo o mais que é preciso fazer para que estes dias não sejam ainda mais infernais. Por isso, e para conseguir cumprir prazos e obrigações, responder a e-mails, escrever e participar em reuniões à distância, hoje de manhã dei o necessário apoio informático (se ao menos elas já fossem adolescentese autónomas do ponto de vista digital…) e combinei que à tarde poderiam fazer o que lhes apetecesse até a mãe chegar porque eu tinha de trabalhar concentrado.

A reunião das 16h30 é à vontade. Casual. Utra-casual. Regresso ao Zoom e posso regressar à t-shirt. Se calhar ia até à varanda com o computador. Ou à casa-de–banho. Não! À vontade mas não à vontadinha. As outras pessoas estão todas a beber cerveja. Bastards! Se ao menos já fossem seis da tarde…

Esfrego os olhos, cumprimento toda a gente e percebo melhor o que alguns investigadores querem dizer quando falam de “Fadiga de Zoom”. Estou cansado de estar sentado. Cansado de fixar tanto a vista. Cansado de dizer as mesmas coisas várias vezes, em voz alta e falando pausadamente, para garantir que me percebem bem. Cansado de tentar perceber se a outra pessoa está mesmo a ouvir ou se a imagem congelou porque a ligação de wifi do outro lado é fraca.

Uma das filhas chega quando estou a mostrar os dados que preparei para a reunião. Está tudo bem, apenas cansada e quer mimo. E eu aqui. Depois chega a outra porque a primeira deixou a brincadeira a meio. Começam a discutir. Eu engano-me. As pessoas riem-se uma vez. E outra. À terceira percebo que já não estão a achar tanta piada. Tento perceber se o que vejo pelas caras deles é solidariedade comigo ou se é impaciência porque querem acabar aquilo rapidamente. Até isso é diferente agora. Com estas videoconferências perdeu-se a comunicação não verbal, já não conseguimos interpretar pelos gestos e pela forma como as pessoas se mexem nas cadeiras se estão a prestar-nos atenção e a gostar de nos ouvir ou se estão com a cabeça noutro lado qualquer. Pior: quando o olhar deles se desvia da câmara e do monitor vai para o caderno onde tomam notas das coisas interessantíssimas que eu digo ou vai para o telemóvel onde estão a ver o Instagram e a trocar mensagens com o marido?

Entretanto, do lado de cá, compro alguma paz com as minhas filhas ao dizer-lhes que podem jogar jogos no meu telemóvel. E concluo a apresentação, acabamos a reunião e despeço-me das pessoas a prometer a mim próprio que nunca mais aceito seis reuniões de seguida sozinho em casa com as miúdas. O teletrabalho pode uma extraordinária vantagem porque permite trabalhar à distância, mas é terrível quando temos de o fazer com crianças em casa.

São cinco e dez, procuroo e-mail com as coordenadas para a reunião seguinte. Não encontro. Perco tempo, tento um link que não funciona, experimento outro de um evento que já passou. Quando finalmente consigo ingressar já perdi parte da conversa e só tenho vontade de chorar. Não me apetece estar aqui.

Entretanto a filha mais velha surge esbaforida a lembrar que tem aula de música agora. Peço licença, cubro-me de vergonha, vou a correr preparar o outro computador para a miúda ter a aula. A professora quer o WhatsApp vídeo em simultâneo para poder ver a postura da aluna com a flauta enquanto o computador emite o som de fundo que servirá de acompanhamento musical. Vou à mais nova, que fica chateada porque tem de ceder o telemóvel à irmã – o meu telemóvel, onde entretanto vejo que tenho quatro mensagens para responder – e lá a convenço a trocar aquilo por dois bombons e desenhos animados na TV à escolha.

De regresso à reunião – aquela a que cheguei atrasado e da qual já tive de sair – passo pela cozinha. Olho para a garrafa de vinho. Ainda não são seis horas. Mas penso que a culpa é do fuso horário em que estamos. Em Espanha, por exemplo, já passa das seis. Já deve contar. Abro o vinho. Regresso ao Zoom. Fico calado a ouvir aquelas pessoas. Abro a boca quando me perguntam coisas. Bebo às escondidas.

Daqui a pouco chegará a minha mulher e pergunta como foi o meu dia. “Espetacular”, vou responder. A boa notícia é que já não tenho mais reuniões. A má notícia é que já só temos esta garrafa de vinho.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

 

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro

Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio

Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril

Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?

Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso

Dia 62. As pequenas vitórias que nos passam ao lado