É sempre fascinante procurar perceber não só aquilo em que as pessoas acreditam, como o modo como acreditam, a forma e a intensidade da sua crença. O que é quase uma outra maneira de dizer: o que faz sentido para elas, as exigências de sentido que têm, a tolerância ou a intolerância face ao que parece não fazer sentido ou que, de facto, não o faz.

Na vida corrente, a maior parte das pessoas lida bem com aquilo que aparenta não fazer sentido. É, de resto, uma condição indispensável da sobrevivência. O sem-sentido, real ou imaginário, está em todo o lado na realidade humana que nos rodeia: à superfície, nas acções que observamos, e no mais profundo, nas intenções que supomos nos outros (e, já agora, nas nossas próprias). Saber conviver com ele é uma necessidade absoluta. Claro que é preciso tentar compreender. Mas compreender é exactamente procurar determinar algo contra o pano de fundo de uma enorme indeterminação, isto é, de aparente não-sentido.

Há, é claro, excepções a esta atitude comum, que é uma atitude muito saudável. Uma é a dos grandes sistemas filosóficos. Eles ambicionam, regra geral, fazer sentido de tudo, ou, pelo menos, reduzir o espaço do sem-sentido a um resto indiferente e superficial. Este excesso faz parte do seu projecto e justifica-se por ele. Deixo-o, portanto, aqui de lado. Outra excepção, de uma natureza substancialmente diversa, é a de certas patologias mentais para as quais tudo obrigatoriamente faz sentido. Para um paranóico, no seu delírio sistemático, nada verdadeiramente é destituído de sentido: tudo tem obrigatoriamente de o possuir.

É curioso verificar que o pensamento político apresenta, mesmo nas mais pacatas criaturas, uma certa tendência a encaminhar-se para este pouco recomendável modo de pensar. Tudo tem que fazer sentido, e um sentido absolutamente unívoco, sem o mais leve vestígio de equivocidade. Todas as analogias são mobilizadas, das mais verosímeis às mais inverosímeis e selvagens. Longe de mim pretender que as analogias não são um modo necessário de pensamento. As próprias ciências se servem delas abundantemente e os assuntos humanos, por maioria de razão, requerem-nas certamente. Mas há limites para o seu uso. O entusiasmo, seja ele negativo, seja ele positivo, exigindo uma adesão total, descura por inteiro tais limites. Tudo conspira, como diziam certos filósofos gregos. Quer dizer: tudo participa do mesmo movimento, tudo, no limite, está ligado com tudo. A crença é absoluta e sem falhas.

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Estas reflexões muito abstractas vieram-me ao espírito por causa de um artigo publicado por Miguel Sousa Tavares no último Expresso. Escreve ele, logo à abertura: “Há uma conspiração de extrema-direita a nível internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada passo a passo”. O resto do texto pretende ilustrar a tese geral, com a já indispensável referência ao potencial totalitário das “redes sociais” e desconsiderações avulsas por quem com ele não concorda. Miguel Sousa Tavares tem como sua característica, entre outras sem dúvida apreciáveis, uma intensidade nas suas crenças políticas que atinge proporções cósmicas. Mas a passagem citada é particularmente interessante.

Senão, vejamos. Há uma “conspiração”. A palavra é forte: um acordo mais ou menos secreto para derrubar os poderes actuais. E uma conspiração “internacional”, reunindo “conspiradores” oriundos de várias partes do mundo, unidos, imagina-se, por sinistros juramentos. A conspiração, coordenada por uma inteligência diabólica (Steve Bannon?), desenrola-se meticulosamente, “passo a passo”. Sem pressas, como convém a planos sabiamente orquestrados, não deixando lugar ao acaso e à improvisação. O Special Executive for Counter-intelligence, Terrorism, Revenge and Extortion é um bando de amadores por comparação.

Qual é o principal problema desta tão poderosa visão? É exactamente o de tudo aqui fazer demasiado sentido para ser real. A realidade é, por definição, rugosa e imperfeita. A realidade imaginada por Sousa Tavares, pelo contrário, é uma superfície polida que em tudo reflecte uma intenção única e límpida. No seu entusiasmo negativo contra Trump, Bolsonaro e outros, Sousa Tavares supõe-lhes uma miraculosa coordenação e um desígnio comum planeado com uma extravagante antecedência. Dizer que isto vai muito além do razoável é dizer pouco.

Há nisto, no entanto, um mérito indiscutível. É o de ilustrar de forma exemplar uma verdade geral. Quando se procura um sentido absoluto que não deixe lugar a contingência alguma e à indeterminação do sentido, uma coisa é certa: é porque se abdicou, sabendo-se isso ou não, do esforço intelectual necessário para perceber algo do mundo à nossa volta.