A regionalização voltou à ordem do dia como é habitual em vésperas de eleições. António Costa promete um referendo sobre o assunto, ideia peregrina que Marcelo Rebelo de Sousa subscreve. Como também é habitual nos dois políticos mais espertos do regime a nova iniciativa não passa de um truque. Primeiro, Costa e Marcelo confundem regionalização com descentralização. Na verdade tratam-se de realidades distintas pois com a primeira criam-se mais centros de poder dentro do Estado, mais barreiras entre o cidadão e o poder político, mais burocracia, mais lugares no funcionalismo público, enquanto na segunda se aproveita o que já existe, delegando-se no poder local funções e poderes de angariação de receitas que são exclusivos do Estado central. Ao confundirem uma com a outra, Costa e Marcelo querem que se aprove a regionalização enquanto se pensa na descentralização, daí o truque. Truque barato, sem dúvida, mas que pode dar certo se o país não tiver cuidado.

Até porque para evitarem esta crítica (que nem é original) Costa e Marcelo contam com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Estas são um produto do Estado Novo (o que diz muito sobre a visão que os actuais governantes têm da organização política do Estado) que com o tempo se transformaram num modo de distribuição dos fundos europeus. A ideia agora, e que António Costa não esconde, é ir dotando as CCDR de mais competências de forma a, quando em 2024 se votar o referendo da regionalização, se demonstrar que “a criação de regiões administrativas não vem aumentar o número de lugares, órgãos e encargos, pelo contrário, permite racionalizar, consolidar, integrar e dar sinergias aos serviços que já existem e que agora trabalham cada um para seu lado”. Foi o próprio que o disse porque António Costa não mente; subentende.

Para completar o ar de autonomia e abertura democrática destas instituições, o Primeiro-Ministro contou com a ajuda do líder do maior partido da oposição. Em Agosto de 2020, Costa e Rio acertaram quem venceria as ‘eleições’ para a chefia de cada uma das comissões regionais e, em Outubro desse mesmo ano, os resultados saíram conforme o planeado. Sejamos concretos neste ponto: não foi por acaso que estas comissões foram pensadas e estabelecidas no Estado Novo .

O segundo truque é fazer passar a ideia que com a regionalização o poder político fica mais próximo dos cidadãos. Ou dito de outra forma: faz-se de conta que se descentraliza. Como é de esperar o poder não vai ficar mais próximo das pessoas porque as regiões, além da criação de mais burocracia, lugares políticos e barreiras entre os cidadãos e os centros de decisão, vão depender dos fundos atribuídos por Lisboa. Continuará a ser o poder em Lisboa a determinar quem recebe,quanto recebe e em que termos recebe.

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O problema é semelhante ao vivido pelo poder local apesar de, neste caso, existirem impostos municipais. O que sucede é que estes impostos não são pagos directamente às autarquias, mas à Autoridade Tributária. Ao Estado Central que depois distribui o dinheiro pelas autarquias. O regime financeiro das autarquias já permite que estas liquidem e cobrem os impostos, nomeadamente o IMT e o IMI, mas a teoria anda muito longe da prática. Conseguir dar esse passo seria muito mais importante para a descentralização do Estado que a criação de regiões. Tal como seria indispensável que as autarquias fossem geridas sem acesso aos vários fundos (municipal, de coesão, e por aí fora) que o poder central remete para os municípios e sem os quais os municípios não funcionam porque dependem financeiramente de Lisboa.

Para que se descentralize o Estado os autarcas têm de ter política fiscal. Têm de associar a despesa à receita, de forma que os bons gestores consigam reduzir impostos e, dessa forma, captar investimento de empresas e de pessoas. Uma política financeira e fiscal que force os maus autarcas a subir impostos e a pagarem o correspondente preço eleitoral por não terem sabido gerir os bens públicos. Só uma política fiscal autónoma permite ao poder local tomar decisões sem ter de esperar que Lisboa dê luz verde.

Naturalmente que esta solução tem um problema: dificilmente o poder central está disposto a perder as receitas municipais que distribui pelo país fora. Se o fizesse o mais certo era o govero central e o município de Lisboa ficar com menos dinheiro. Ora, é precisamente por este motivo que quando António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e outros políticos falam muito em regionalização. O que pretendem não é descentralizar, mas criar mais poderes que se interponham entre o cidadão e o poder político. Poderes que continuem dependentes do governo central, da administração central e que recebam os fundos por via da Autoridade Tributária. Muito simplesmente que se crie a aparência que se descentraliza quando na realidade só se regionaliza. Se montam regiões, gabinetes, secretarias, burocracias, razões e motivos para mais papéis, chatices, dores de cabeça e muito pouca produtividade. Porque de útil só tem mesmo o parecer que se faz sem que se faça. À boa maneira de Costa, Marcelo e Rio.