As propostas que o PSD apresentou para a saúde — “Uma Política de Saúde para Portugal” — são ainda escassas na forma e no conteúdo. Compreende-se que seja assim, mas já seria tempo de publicarem um documento mais robusto, mais sólido e explicativo. Já anteriormente alertei para a necessidade de substituírem-se panfletos por verdadeiras propostas, sustentadas em análises que demonstrem os seus fundamentos, a sua exequibilidade e, acima de tudo, os objectivos sanitários a atingir, bem como os resultados esperados e os prazos desejados para os atingir. Não é fácil, bem sei, mas para isso é que devem ter decidido criar Conselhos que denominaram de Estratégicos e Nacionais. Aceitemos que estas 40 páginas, em estilo “power point”, sejam só um primeiro exercício, lento na sua gestação, de ideias básicas que merecerão medidas concretas.

Em boa verdade, nada do que está escrito no texto do PSD merece repúdio absoluto. Claro que o Governo negará as críticas que, como sempre, denominará de populismo, mas a verdade é que o ministério da saúde, apesar das suas boas intenções, tem falhado nas questões essenciais. E falhou por quatro razões simples:

  1. Não estava preparado para governar,
  2. Foi arrogante na apreciação que fez de quem o antecedeu,
  3. Prometeu, sobranceiramente, o que não podia dar e
  4. A política financeira do Governo prejudicou o investimento público e a prestação de cuidados de saúde.

Em suma, os dois primeiros capítulos – “Situação actual” e “A necessidade de uma nova estratégia e de uma reforma estrutural na Saúde” — merecem o reconhecimento de que são factuais e até poderiam ter sido mais críticos. No que à necessidade de reforma diz respeito, entendo que o risco de insustentabilidade até será num prazo mais curto do que muitos pensam, para o nível de serviço que é necessário e face aos desafios da evolução da tecnologia que são muito mais importantes do que os do envelhecimento populacional.

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Olhemos agora para os “Principais pilares da reforma estrutural da saúde em Portugal”. Da leitura do texto não se consegue inferir quais são os “pilares”. “Defender a finalidade do SNS como conquista indiscutível do 25 de Abril”, não é nada de novo e, convenhamos, a assistência pública não começou com o 25 de abril. “Manter a elevada qualidade dos serviços que os profissionais de saúde têm sido capazes de prestar aos portugueses”, é o que todos o desejam. “Garantir a manutenção e modernização dos equipamentos de acordo com a evolução tecnológica”, é um bom tiro no alvo, renovando a atenção para uma das maiores falhas do PS, o da “nova” esquerda. Depois, dizer que os pilares do sistema são o sector público, privado e social, é um truísmo, mas é sempre bom lembrar.

Tudo certo em termos de promoção da saúde da prevenção da doença. Enumeraram os princípios com que nem a esquerda mais assanhada deixará de concordar. Saúdo o compromisso em intervir fiscalmente na modelação da procura de comportamentos menos saudáveis, embora o problema esteja longe de ser apenas o dos alimentos, onde as experiências fiscais internacionais têm sido pouco consistentes no seu sucesso. Há muito mais para fazer na política fiscal sobre álcool e tabaco. Numa próxima revisão terão de ter o cuidado de substituir “alcoolismo” por “problemas ligados ao álcool” e dar uma atenção especial aos problemas da saúde mental, incluindo as dependências. Também alerto os autores para a necessidade de serem cautelosos no julgamento de que os “rastreios” – a prevenção secundária – é a chave para a melhoria do estado de saúde das populações. Antes de apostar nos rastreios, nas doenças e nos contextos em que eles puderem ser úteis – não são muitos -, é preciso garantir que há a intervenção indispensável sobre os casos detectados. Acesso é a chave.

Fiquemos, pois, à espera de saber quais são as formas como o PSD entende que se deve intervir na promoção da saúde e na prevenção da doença, quais são as prioridades que pensa abordar, como julga ser possível reverter comportamentos menos propiciadores da saúde. Para já, sublinhe-se o reconhecimento de que há problemas na esfera da promoção da saúde e da prevenção das doenças e esperemos que desse reconhecimento resulte um empenhamento maior do que o Governo das esquerdas tem demonstrado no combate a estas questões. Fizeram pouco e de forma mal estruturada, mas nunca é fácil fazer muito, dadas as enormes resistências políticas, económicas e sociais, e os resultados só se medem a longo prazo. Sem modéstia, entendo que Paulo Macedo e a sua equipa fizeram, em contexto adverso, muito mais do que os seus sucessores e há um ímpeto que se está a perder.

Também mereceria maior destaque o conjunto de ideias que gostariam de implementar para a formação, contratação e fixação de pessoal no serviço nacional de saúde. Lamenta-se alguma indefinição sobre o que julgam ser a justa medida da descentralização na saúde. Em termos de modelo assistencial e de prestação, não se percebe qual a posição do PSD sobre o papel do alargamento dos cuidados ambulatórios e que visão tem sobre os cuidados continuados e paliativos. São necessários. Já se sabia. Qual a ideia do PSD sobre hospitais de proximidade? Qual a proposta de reforma para os cuidados continuados e paliativos? E, sobre a emergência médica e os seus serviços, o que pensam? Com o tempo, estou certo, saber-se-á.

Quando dizem que “na vertente pública do Serviço Nacional de Saúde há que mudar de paradigma em termos da sua gestão” fazem um conjunto de afirmações, não especificando a forma de como as concretizar, que podiam e deviam estar escritas nos programas eleitorais de todos os partidos. Contudo, ainda pouco foi feito, nomeadamente no que diz respeito à relação entre remuneração e desempenho, exceto nos cuidados primários e por mérito de uma reforma iniciada num governo do PS. Até aqui, continua tudo certo. Um objectivo político concreto seria a de equiparar as remunerações do sector hospitalar às unidades de saúde familiar de tipo B. Porque não? Sai caro, não duvidem, e implicaria redistribuição de rendimentos, sempre difícil de implementar junto dos que poderão ter de perder alguma coisa.

Vamos então à suposta novidade deste rascunho de políticas para a saúde. “A contratualização da gestão de unidades públicas às outras iniciativas deverá ser feita em concursos que, de antemão, garantam: o acesso por parte das populações nas mesmas condições de hoje, a melhoria da qualidade dos serviços prestados e a redução da despesa pública”. Não é novidade. A primeira experiência foi feita por um governo do PS, com Maria de Belém, e as PPP da saúde foram idealizadas, elaboradas, contratualizadas e implementadas por outros Governos PS, com Correia de Campos e Ana Jorge. O governo de Passos Coelho apenas prosseguiu o que estava já contratado. E bem contratado. Logo, é ridículo, para não dizer desonesto, ouvir alguns dirigentes do PS dizerem ou escreverem que há quem ataque o SNS para o privatizar – tolice completa – ou que a gestão privada é um demónio a abater. Quando a política chega a este ponto e os argumentos são estes, está tudo dito. Não querem discutir a saúde, querem esconder e escamotear uma realidade – a do SNS – que não dominam e na verdade nunca dominaram.

Vejamos o que está escrito e pensemos no que parece ser proposto. Para o PSD, não há a intenção de entregar todo o SNS à gestão não pública. Querem concursos transparentes e assegurar que dessa gestão não pública possam resultar ganhos de saúde. Não, isto não é privatizar o SNS e só o facto de se mencionar “privatização” no texto do PSD é que pode levar alguém a julgar que esse risco poderia existir. Aqui, houve má estratégia comunicacional. Este tipo de defesa, antecipando ataques, só deve acontecer depois de conhecidos os argumentos do contraditório.  Mas esta ideia de recuperar a gestão privada, por concessão, de serviços públicos tem méritos e deméritos. É uma boa ideia geral, com limitações e insuficiências.

A gestão por privados pode apresentar algumas vantagens de carácter político e operacional, nomeadamente:

  1. a contratualização do racionamento – é assim mesmo quando fica determinado que a instituição não fornece mais do que está contratado -,
  2. a concretização de redes e sistemas de referenciação,
  3. o estabelecimento concreto de centros de excelência com financiamento diferenciado,
  4. a possibilidade de investimentos e melhoramentos que de outra forma não poderiam ser feitos – a entidade gestora assume o risco e o possível acesso a crédito por parte do gestor, que não é o Estado, não aumenta a dívida pública -,
  5. autoriza o pagamento diferido dos resultados – o Estado paga, em “suaves” prestações, o que tiver sido produzido e os investimentos realizados, mas o pagamento já está dentro do perímetro contabilístico do Estado, ou seja, a gestão privada, tal como sucede com os hospitais EPE, é do universo das contas do Estado -,
  6. melhora o controlo da qualidade – aplicam-se multas e exige-se  acreditação, o que também deveria acontecer com os hospitais públicos todos.

Gestão privada não implica mudança da propriedade que continua a ser do Estado e, no caso das PPP, o património edificado e os equipamentos revertem totalmente para o Estado, terminada a vigência do contrato de exploração. A gestão privada de bens públicos é particularmente interessante para iniciativas novas, a construir, e potencialmente menos interessante para o que já existe. Como é evidente, o risco de assumir a gestão do Hospital de Santa Maria será sempre maior do que construir uma PPP nova.

A gestão privada não garante, por si só, competitividade. Competitividade, como motor da qualidade, garante-se pela concorrência entre operadores em ambiente de livre acesso. A concessão de gestão privada não melhora, necessariamente, o acesso a mais cuidados.

Todavia, o Estado não deve, apenas por força da garantia de renda, incentivar a construção de mais estruturas privadas de prestação de saúde. A liberalização do mercado obrigará a uma maior intervenção pública na planificação da distribuição de equipamentos. Não será por haver mais participação dos sectores social e público, com financiamento público garantido, que deixará de existir um conjunto de custos fixos que resultem da necessidade de cobertura de território e de oferta tecnológica que o Estado não pode deixar de ter. Haverá sempre zonas menos apetecíveis onde só o Estado poderá garantir cuidados. Por outro lado, a competição entre sector público e privado pode resultar em menos eficiência quando a utilização dos equipamentos públicos diminuir por força da procura do privado. O Estado não pode ficar refém da oferta privada que, na ausência de alternativa, inflacionará os preços. Estes argumentos também terão de ser ponderados na análise da proposta que coloco no fim do texto.

Não são precisos privados para que se possam impor melhores regras de gestão. A gestão privada não garante melhores gestores. A gestão pública não é necessariamente pior do que gestão privada. O Estado pode, e deve, pagar melhor aos seus profissionais, gestores incluídos. Não faltará quem queira gerir hospitais e centros de saúde, se as condições e remuneração forem atractivas. O Estado não deveria ter acabado – é o que sucedeu sem ser por diploma legal – com a carreira de gestores hospitalares. Por outro lado, devolvendo a autonomia e financiando adequadamente os hospitais que já deveriam ser todos EPE, pode conseguir-se tudo o que a gestão privada promete. Os cuidados primários também poderiam estar em regime EPE, como estão as Unidades Locais de Saúde. Não vale a pena inventar a roda. Ou seja, a gestão privada de instituições do SNS pode ser uma boa solução onde for a melhor solução, como diria La Palisse, mas não é panaceia.

Os resultados financeiros das PPP são bons para o Estado, mas, por enquanto e vistos numa perspetiva isolada, nada bons para os operadores. As PPP existentes são boas porque o contrato determina que os operadores têm suportado prejuízos. Contratos mais equilibrados e abrangentes, em termos de especialidades, serviços e tecnologias, não seriam tão baratos. A gestão privada funciona, para as finanças dos gestores, quando há integração de operações no grupo prestador. Ainda está por demonstrar que os resultados assistenciais das PPP sejam melhores do que seriam se fossem hospitais inteiramente públicos.

O mais importante é que a gestão por privados não resolve o problema do acesso. Esta questão só será parcialmente resolvida com a adoção de um modelo de seguro público, geral e talvez obrigatório, que garanta a TODOS o acesso a TODO o sistema. Digo “parcialmente” porque há muito mais a fazer para garantir acesso e, sobre isso, o texto do PSD é omisso.

É esta a proposta que o PSD terá de fazer, se quiser ser inovador. A grande reforma é mudar o actual sistema de financiamento. A ADSE é só para funcionários públicos e voluntária. Não deveria ser assim. Deveria ser substituída por um seguro público, concorrente e complementar dos seguros privados. A liberalização do acesso a todos os cidadãos terá custos de regulação, mas o aumento da entrega da gestão a privados também terá custos administrativos que ninguém contabiliza. Em vez de apenas garantir aos privados o acesso à gestão do sector público, o que já acontece, garanta-se ao público o acesso ao privado. Essa, seria a reforma.

Médico, antigo ministro da Saúde