O mundo divide-se entre os que vivem depressa e os que vivem devagar. Para os que vivem depressa, os anos passam a correr. Para os que vivem devagar a felicidade começa quando ela se deseja e se constrói. Para os que vivem depressa, o tempo foge e nunca chega. E, por causa disso, existe o ontem e o amanhã. Para os que vivem devagar, o hoje sobressai sobre o tempo todo. Seja como for, a mim parece-me que vivemos quase todos demasiado depressa. E que é à conta de vivermos depressa que não vivermos o hoje, como devíamos. E que, por causa disso, as pessoas que vivem depressa se dividem entre os que sofrem por antecipação e os que vivem por antecipação. Vendo bem, não têm muito a ver uns com os outros. A não ser que, numa e noutra circunstâncias, nada disso é viver.

Os que sofrem por antecipação, vivem no ontem. Imaginam, antes de as viver, todas as dores. Porque não vivem o hoje, o amanhã é sempre um lugar que não se recomenda. Na verdade, por mais que não o digam, acham que crescer será, sobretudo, um sofrimento. Imaginam perigos em vez de descobertas. Aflições no lugar dos desejos. E decepções antes das surpresas. Na verdade, não vivem. Antecipam as dificuldades e os problemas. E desistem de as enfrentar e de os resolver. Evitam a vida com faltas de comparência.

Os que vivem por antecipação, vivem no depois de manhã. Não vivem; projectam viver. Estão, todos os dias, cercados por listas de compromissos. Nunca rejubilam com uma vitória porque, no dia seguinte, têm sempre outro rol de tarefas por realizar. Entendem o cansaço como uma variante da preguiça. E o tempo livre como um luxo ao qual não têm direito. Para eles, a vida está sempre em segundo lugar. Na verdade, não vivem. Desistem de viver. Por greve de zelo.

Viver depressa não significa que não temos tempo para aquilo que é importante. Significa que nos demitimos de nos darmos tempo para isso mesmo. Que não nos damos o direito ao hoje. Que baralhámos a hierarquia das nossas prioridades. E que corremos em direção a tudo sem chegarmos a tempo a quase nada. Significa que aquilo que nos cansa não é o trabalho. Nem sequer é por ele que somos empurrados para o burnout. São os pensamentos que não pensamos, as palavras que não dizemos e as pessoas que não vivemos que nos convidam à fadiga. E ao modo como não nos reconhecemos em nós. Na vida que, entretanto, construímos. E nas relações que, à custa disso, delapidamos. Viver depressa significa um viver penoso que cansa e que pesa. Porque falamos pouco. Convivemos pouco. Cuidamos pouco. Criamos pouco. Amamos pouco. Estamos, basicamente, sempre mais ou menos em falta.

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As nossas formas de dizer que não vivemos no hoje e que o amanhã parece longe são diferentes das das crianças. Elas perguntam se “falta muito”. Nós reconhecemos que é “tarde demais”. Elas procuram o hoje. Nós damo-lo como perdido. Mas o mais estranho é que o nosso viver depressa é um misto de resignação e de orgulho. Ora como se um mundo onde os compromissos do trabalho nos engolem, de forma glutona, horas e mais horas, nos transformassem em vítimas; indefesas. Ora como se isso nos elevasse a um grau de destaque que nos faz ter uma “hora de ponta” de solicitações que, de certa forma, nos alimenta a ilusão de que “todos” nos querem. E que só isso nos torna importantes. Como se uma vida, com limites de velocidade, fosse enfadonha, rotineira, entediante e cansativa. Ou como se os nossos “Não tenho tempo!” transformassem todos os “hoje” em coisas sem importância. Por outras palavras, o tempo foge-nos! E por vivermos depressa, todos já falhámos, aqui e ali, por falta de tempo, em muitos momentos importantes das pessoas mais indispensáveis da nossa vida: uma festa, uma audição, uma aula, um jogo, uma consulta ou um momento a dois.

O que é que se passa connosco para que a capacidade inata que as crianças têm para viver o tempo no hoje pareça extraviar-se? Por exemplo: não se pode pedir a uma criança que guarde uma surpresa como se fosse um segredo. Quando se vibra com ela, a vida transforma cada bocadinho de amanhã num teimoso e abelhudo longe demais. Logo, a capacidade para guardar uma surpresa acaba ali. Da mesma forma, quando ela tem à sua espera uma experiência boa, e lhe tentamos “incutir” a paciência como uma qualidade que a torne capaz de a desejar, uma criança pergunta se aquilo com que sonha “É amanhã?” (como se isso fosse o mais longe que ela é capaz de esperar. Depois do qual uma espera fosse um sacrifício muito doloroso de se aguentar). Mas isso faz da ânsia de viver no presente uma tendência escorregadia própria das crianças? Será que viver no presente é uma impaciência, simplesmente? Ou que viver no presente será a mesma coisa que viver “como se não houvesse amanhã”, próprio de um mundo agitado, que descarta recursos, que compromete o futuro e que remete para o desprezo as consequências de todos os “hoje” dos nossos actos, sem culpabilidade e sem remorsos?

Não! Viver no presente é tudo aquilo que nos torna capazes de viver devagar. Mesmo quando, como elas, nos custa entender a forma como lhes respondemos a mais um ”É amanhã?”: “Amanhã, logo se vê…”.