No início de 2022 previ que poderíamos enfrentar uma grande guerra na Europa. Ao contrário do que muitos diziam, pareceu-me claro que uma mobilização de forças russas sem precedentes desde o final da Guerra Fria podia ser o prelúdio de uma invasão em grande escala da Ucrânia. Hoje parece-me igualmente claro que fortes tendências estruturais globais fazem da continuação e multiplicação de guerras várias o cenário mais provável para os próximos anos. Devemos desde já temer uma perigosa escalada regional no conflito entre Israel e o Hamas, e os seus aliados, o Hizbullah, os Houthis e o Irão, com consequências diretas na inflação, na segurança económica e energética da Europa. Felizmente os EUA têm estado ativamente a tentar evitar isso, mas está longe de ser claro que o consigam por muito mais tempo. Devemos desistir da paz e da liberdade em segurança? Não, mas devemos preparar-nos para uma paz armada na melhor das hipóteses.

Um Mundo com mais guerras

A melhor publicação de referência sobre este tema tem mostrado nos últimos anos um crescimento dos conflitos armados, e a sua edição mais recente sublinha uma dificuldade crescente em lhes por fim. Uma das razões é um número crescente de conflitos internos estar fortemente internacionalizado. O apoio de grandes potências externas aumenta a probabilidade, a intensidade e a durabilidade destas guerras. É fundamental, no entanto, sublinhar sempre, que falarmos de conflitos indiretos ou por procuração, não significa que os atores locais sejam meros fantoches de uma grande potência. A Ucrânia está a combater, com decisiva ajuda ocidental, para não ser um satélite de Moscovo, porque quer ser um membro de pleno direito do Ocidente livre. O Hamas não é um mero joguete do Irão, embora Teerão tenha usado o movimento para descarrilar qualquer possibilidade de paz entre os seus rivais árabes e Israel, contando para isso também com a incompetência e radicalismo do governo de Netanyahu. E Israel está longe de ser um mero instrumento dos EUA, se assim fosse já haveria um Estado palestiniano desde 2000, quando Bill Clinton investiu o seu considerável capital político num acordo.

Vivemos também numa grande incerteza económica global, com sucessivas crises globalizadas e elevada volatilidade, o que significa que há muita gente que perdeu tudo e sente ter pouco a perder e muito a ganhar com uma guerra. Vivemos grandes transformações tecnológicas. O maior exemplo disso é desenvolvimento descontrolado da Inteligência Artificial por tecno-barões decididos a aumentar o seu poder, riqueza e fama. Vivemos igualmente enormes transformações, com impacto difícil de prever mas altamente disruptivas, até no nosso ambiente físico, na atmosfera e no clima. Em suma, até abiosfera, que nos habituámos a tomar como base estável e segura de toda a vida, está em crise.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A ideia popular em certos meios de que seria possível evitar todas estas guerras e crises se todos nos manifestássemos mais pela paz e pelo ambiente pode ser bem-intencionada, mas está ao nível de um concurso de misses. Igualmente disparatada é a ideia de que tudo se resolvia se o Ocidente euro-atlântico tivesse cedido mais à Rússia ou ao Irão. Esta é – ironicamente e apesar de ser subscrita pelos grandes defensores do catecismo da descolonização politicamente correta – uma visão profundamente eurocêntrica, neocolonial e ignorante de padrões globais da política e da história. Na medida em que este tipo de posição venha a influenciar as decisões de eleitores e decisores é também perigosamente errada. Vimos movimentos semelhantes, até com protagonistas semelhantes, durante a Primeira Guerra Fria, por exemplo, em Portugal, o PCP e várias tendências terceiro-mundistas. Também então abundavam os pseudopacifistas por toda a Europa, com slogans como “better red than dead”. Ou seja, seria melhor sermos “vermelho”, vassalo dos comunistas soviéticos, do que mortos numa Terceira Guerra Mundial. Felizmente, entre 1945-1991 estas teses foram sempre derrotadas, como derrotada foi também, no final, a URSS, e sem uma Terceira Guerra Mundial.

O ano de 2024 será um teste decisivo

Neste Mundo em guerra, a paz e a liberdade de que gozamos não serão mantidas por manifestações na Europa e nos EUA. Menos ainda o serão por uma abjeta demostração de fraqueza militar e política de que, por exemplo, os atuais defensores do apaziguamento a qualquer preço de Putin na Ucrânia defendem. Esse é o caminho habitual de idiotas úteis ou dos admiradores das autocracias expansionistas, como foi o caso dos apaziguadores de que a Alemanha de Hitler se aproveitou, na década de 1930, para se ir expandindo e armando.

É por isso que o conflito na Ucrânia é tão importante. Uma derrota total de qualquer dos lados será difícil e no caso ucraniano só será possível se o Ocidente fraquejar no seu apoio. Por isso, a Ucrânia será o grande teste geoestratégico do próximo ano. Se os EUA e a Europa deixarem cair Kiev, irão encorajar outras potências revisionistas a adotar uma ação externa mais violentamente expansionista. Teremos mais guerras.

Cabe-nos escolher. Sim, devemos manter canais diplomáticos abertos para evitar uma escalada para uma guerra global e total, mas também devemos manter uma defesa, uma dissuasão e um sistema de alianças fortes. Essa escolha caberá sobretudo aos norte-americanos. Todos devíamos ter um voto nas eleições nos EUA, somos tão afetados por elas. No entanto, também os europeus poderão e deverão fazer escolhas. Desde logo, nas eleições para o Parlamento Europeu de junho de 2024, que convém que os portugueses percebam tem hoje tem tanto ou mais poder do que a nossa Assembleia da República.

Se os EUA, em 2024, escolherem Donald Trump, e com ele um isolacionismo que ponha de lado os interesses vitais de muitos aliados europeus em conter o expansionismo imperialista russo, a Europa terá de repensar a sua postura global. Seremos confrontados com a nossa excessiva dependência da força militar norte-americana. Assistiremos também a uma pressão crescente para abandonarmos uma política externa determinada por princípios, e adotar um total pragmatismo na defesa de interesses vitais ameaçados. Isto, claro, se for possível manter uma União Europeia minimamente coesa.

A NATO até poderá sobreviver a Trump. A UE até poderá sobreviver a uma vaga populista e extremista, de esquerda e de direita, nas eleições de 2024 para o Parlamento Europeu. A NATO e UE até poderão não acabar formalmente. Mas podem ser esvaziadas na prática por decisores nacionais hostis. Uma Europa e um Ocidente “das nações” ou “do pós-capitalismo” de que ouvimos os extremos à direita e à esquerda falar com apreço, será um continente dividido e empobrecido. Irá provavelmente assemelhar-se à América Latina de hoje. Foi nas Américas e não na Europa que surgiram as primeiras estruturas regionais, ainda no século XIX. As Américas também são as campeãs no número de organizações regionais, muitas criadas de acordo com a moda ideológica do momento. No entanto, boa parte delas não funcionam, estão reduzidas a cimeiras vazias.

Portugal não tem uma melhor alternativa à segurança e prosperidade da Aliança Atlântica e da União Europeia, ao contrário do que dizem muitos terceiro-mundistas requentados em pseudopacifistas descolonizadores. Infelizmente, isto não significa que não venhamos a ser forçados a pensar no assunto, talvez já a partir de 2024. Não querermos que algo aconteça não é uma estratégia em política internacional.