1 De acordo com os elementos disponíveis no momento em que escrevo, as eleições presidenciais marcadas para 24 de Janeiro, se não forem adiadas, decorrerão sob a vigência do estado de emergência e sob o decretamento de um confinamento geral do país. Esta é uma situação gravíssima que considero incompatível com os princípios da democracia. Deixo registado que apoio a candidatura de Ana Gomes, mas esta posição só me vincula a mim.

2 Não está em causa que as eleições serão livres, na medida em que as candidaturas foram apresentadas sem constrangimentos e de acordo com a lei, e não é previsível que as pessoas sejam impedidas ou condicionadas na liberdade do exercício do seu direito de voto. Porém, as eleições têm também de ser justas e para que isso aconteça é preciso, entre outros factores, que esteja assegurado o direito a uma efectiva campanha eleitoral em todo o território nacional e garantido que, no dia da eleição, as pessoas poderão exercer o seu direito ao sufrágio sem recear quaisquer limitações relevantes decorrentes da pandemia que nos assola.

3 Ora, em contexto de confinamento geral, com a impossibilidade ou uma fortíssima limitação do exercício das actividades correntes de uma campanha eleitoral, designadamente o contacto directo dos candidatos com o eleitorado e a realização de acções públicas de campanha em todo o país, não estão preenchidos os requisitos internacionalmente estabelecidos para que as eleições se possam considerar justas. É a campanha eleitoral que permite a exposição das alternativas e a ponderação da escolha pelos eleitores. Sem uma verdadeira campanha eleitoral, o exercício eleitoral não é plenamente democrático. Ademais, quando o incumbente está limitado por ter testado positivo à Covid-19 e há o sério risco de vários outros candidatos também terem de ser submetidos a regras especiais de confinamento. Há, certamente, a possibilidade do recurso à televisão, aos meios de comunicação social e às redes sociais. Contudo, num quadro de constrangimento geral de acções públicas de campanha, esses meios são insuficientes para que o processo eleitoral decorra com normalidade constitucional. Na minha opinião, claro.

4 Acresce que as restrições impostas pelo confinamento, ainda que levantadas no dia das eleições, não deixarão de se fazer sentir na organização das mesas de voto, na presença dos delegados das candidaturas nas assembleias de voto e na deslocação dos eleitores às urnas, devido ao receio legítimo de colocarem em causa a sua saúde, principalmente os mais velhos e todos os outros que integram os chamados grupos de risco.

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5 Não interessa avaliar que candidatos é que ficam beneficiados ou prejudicados com o adiamento. A questão não é do interesse particular de nenhum candidato, mas sim do funcionamento regular do processo eleitoral. É por isso que em muitos países democráticos, na Europa e não só, em função da situação concreta, têm sido adiadas eleições por causa da pandemia provocada pela Covid-19.

6 O argumento de que a Constituição impõe limites muito restritos para a data da realização das eleições é absolutamente falacioso e ofende a consciência democrática do país. Há muito que estão estudadas as situações de estado de necessidade constitucional, bastando para o efeito consultar, por exemplo, as Constituições Anotadas de Vital Moreira e de Gomes Canotilho ou de Jorge Miranda e Rui Medeiros. Já Marcelo Caetano tinha teorizado esse problema, o que continuou a ser feito pelos publicistas portugueses depois do 25 de Abril. Num estudo publicado em 1998, por Freitas do Amaral e Maria da Glória Garcia, escreveu-se: “O estado de necessidade é imposto globalmente pela ideia de direito, não é um estado de excepção ao direito, mas um estado em que a necessidade determina o afastamento de normas jurídicas formais e obriga à sujeição ao direito como um todo, como um bloco de princípios interligados, geradores de justiça e paz em sociedade; o restabelecimento da normalidade será assim o objectivo do exercício dos poderes públicos de excepção”.

7 Naturalmente que a invocação de um direito de necessidade constitucional tem de ser vista de uma forma muito criteriosa, obedecendo a um princípio fundamental de proporcionalidade. Todavia, perante a excepcionalidade do evento, a urgência da adopção de medidas e a natureza imperiosa do interesse público que a elas preside, nada impede que seja considerado esse direito de necessidade. Já os romanos sabiam que necessitas legem non habet.

8 Nas circunstâncias presentes, julgo que esses requisitos estão preenchidos. São mesmo uma evidência democrática. Todos sabemos que, a manter-se o actual quadro previsível de evolução da pandemia, não estão asseguradas as condições para a normalidade do processo eleitoral, pelo que, se os poderes públicos mantiverem o acto eleitoral para 24 de Janeiro, serão responsáveis pela realização de eleições que, embora livres, não serão justas.

9 Era muito jovem, aquando, em 1976, das primeiras eleições presidenciais da democracia, e recordo-me de como me indignou que o processo eleitoral não tivesse sido reaberto quando um dos candidatos, o Almirante Pinheiro de Azevedo, sofreu um ataque cardíaco, três dias antes do dia das eleições, que o deixou à morte numa cama de hospital (segundo o que se disse, só foi salvo graças à respiração boca-a-boca que a mulher lhe fez, mas, durante um largo período, permaneceu entre a vida e a morte). À época, o processo eleitoral não foi reaberto, porque a lei só previa essa reabertura em caso de morte, o que mais tarde veio a ser alterado, no sentido de também abranger a incapacidade do candidato para o exercício das funções presidenciais. Mesmo moribundo, Pinheiro de Azevedo teve mais de 14% dos votos, o que nos pode dar a dimensão da anormalidade de se ter permitido a realização do acto eleitoral com um dos principais candidatos a morrer no hospital. Na altura, prevaleceu uma leitura formal da lei, quando já então eu achava que a incapacidade (grave e notória) devia ser equiparada à morte, como depois a lei veio a consagrar. Digo isto sem qualquer censura ao General Ramalho Eanes, que exerceu o cargo com grande dignidade e em cuja candidatura vim a participar (aliás, com a hoje candidata Ana Gomes) nas eleições seguintes, em que ele venceu o General Soares Carneiro.

10 Como fazer para atender a este contexto de estado de necessidade constitucional? Há várias alternativas e elas dependem fundamentalmente da Assembleia da República, sem prejuízo do desejável consenso que se estabeleça entre os órgãos de soberania. Pode ser uma revisão constitucional, porque a Assembleia da República pode assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária por maioria de 4/5 dos deputados em efectividade de funções; ou uma alteração à lei do estado de emergência que contemple o adiamento das eleições; ou uma lei avulsa que regule esta situação urgente e excepcional. Haverá com certeza bons constitucionalistas que encontrarão a fórmula adequada para o efeito, mas a decisão política não é para ser tomada por juristas, mas por aqueles que na Assembleia da República são titulares do mandato popular. Julgo que um adiamento por três meses (eventualmente prorrogável, se o cenário não for alterado) seria razoável.