Uma família em isolamento, dia 62
“Já fiz a cama. Já está feita há muito tempo. Sabia que me ias pedir outra vez e por isso já despachei. Antes que pedisses. Assim é menos uma coisa em que tens de pensar e ficas mais bem disposto.”
Foi assim que a Carolina me respondeu ontem à hora de almoço quando lhe pedi novamente para ir arrumar o quarto. Não me recordo das palavras exatas e da ordem em que foram ditas, mas garanto que não andou longe disto. Talvez as aspas estejam ali a mais e forcem uma exatidão factual que não corresponde à verdade, mas a ideia era aquela. A minha filha de 7 anos sabia que eu ia pedir novamente. A minha filha de 7 anos sabia que aquilo me ia deixar mais bem disposto. A minha filha de 7 anos sabia que eu ia insistir numa coisa. E resolveu antecipar.
Ri-me, respondi-lhe que estava orgulhoso, fiquei contente. E depois a cabeça começou a trabalhar. “Ela só o fez para eu não a chatear. Só fez aquilopara eu ficar mais bem disposto. Fez aquilo porque sabia que me ia irritar mais tarde. Raios, não devia ser essa a razão.” Não sei quanto tempo estive com aquilo a moer-me o juízo, ainda a maturar na resposta dela, mas o pior estava para vir. Teriam passado cinco minutos, se tanto, quando entrou novamente na cozinha e disse: “Pai, não penses muito nisso. Já fiz, está feita.” E aqui as aspas são verdadeiras.
Os filhos conhecem-nos e sabem ler-nos melhor do que pensamos. São também um bom espelho do que nós somos e conseguimos através deles ver as nossas idiossincrasias, por isso é bom quando nos conseguem encostar às cordas e deixar sem palavras.
Passam hoje dois meses desde que as escolas fecharam e nestes mais de sessenta dias foram muitas as ocasiões em que pedi às minhas filhas para fazerem a cama, arrumarem o quarto, dobrarem a roupa, guardarem os brinquedos. Umas vezes chateei-me com isso, outras deixei passar. Mas não sei quantas terão sido as pequenas vitórias – como esta, da cama feita sem eu pedir – que me terão passado ao lado, tão embrenhado estava nos nervos em franja, no trabalho por fazer ou no cansaço que não deixava pensar bem.
Ontem deve ter sido um dia especial na cabeça da Carolina e da Madalena. Ou então houve um alinhamento cósmico que se estendeu pelas horas seguintes, porque à noite, enquanto eu e a mãe começávamos a ver o direto do Bruno Nogueira no Instagram, naquela épica última emissão de Como É que o Bicho Mexe, as nossas filhas resolveram vestir os pijamas e lavar os dentes sem lhes termos pedido.
Houve um dia desta semana em que a Carolina acabou os trabalhos de casa mais cedo do que eu previa e não me pediu para eu estar constantemente ao lado dela. Houve outro dia, há umas semanas, em que a Madalena pediu para eu abrir a máquina da louça (o fecho da porta tem ali um jeito que as mãozitas pequenas de 6 anos dela não conseguem dar) e decidiu, enquanto eu estava na sala, começar a arrumar pratos, copos, taças, saladeiras, talheres e tachos. Sim, mexeu em várias coisas que se partem. Sim, subiu para cima de bancos. Sim, comecei por lhe dar um raspanete – idiota! – e só depois a elogiei. Recordo-me de um dia em que as duas levantaram a mesa por iniciativa delas. E de um almoço (ou seria jantar?) em que a Carolina disse “eu acho que não gosto disto mas vou fazer um esforço para provar porque a mãe esteve a preparar durante muito tempo”.
Nestes dois meses terão sido mais as vezes em que eu gritei por alguma coisa não estar como eu queria do que as ocasiões em que elogiei o que estava bem, feito com esforço, carinho, por iniciativa própria ou empenho. Foram mais as madrugadas em que me deitei derreado do que aquelas em que achei que tinha sido um dia bom. Foram mais as circunstâncias em que me queixei por andar estafado, moído e farto de tudo isto do que as alturas em que agradeci por não estar doente e não ter ninguém internado.
O teletrabalho, os lay-off, a perna de rendimentos, o ensino à distância, o cansaço, a necessidade de manter a cabeça sã e as crianças focadas são razões de sobra para que os pais confinados e os filhos com escolas fechadas estejam com a saúde mental a precisar de atenção. Há motivos bastantes para estarmos preocupados. Mas, no meio do turbilhão, no meio desta tempestade de areia que nos soterrou, há alturas em que precisamos de olhar para as pequenas vitórias do dia a dia e atribuir-lhes estatuto de grandes conquistas. Isso pode ajudar-nos a ultrapassar isto. Não cura. Mas ajuda muito.
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Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
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Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
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Dia 22. “E se te vestisses de professora?”
Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste
Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento
Dia 26. Não vamos ter ensino à distância
Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia
Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro
Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio
Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril
Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?
Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso