Durante quatro anos, Trump foi responsável por todos os conflitos internacionais que envolvessem os Estados Unidos. Mas com Trump exilado na Florida, começa a perceber-se que o antigo Presidente não era o único culpado pela degradação da situação internacional, sobretudo na relação entre os Estados Unidos e a China. Gostaria de sublinhar duas contradições que surgem frequentemente nas análises sobre a política mundial.

Muitos que celebraram a chegada de Biden à Casa Branca são também aqueles que não querem ouvir falar de um regresso a uma nova Guerra Fria. Mas Trump era na realidade o Presidente pós-Guerra Fria. Desvalorizava a dimensão ideológica na política mundial, valores democráticos e direitos humanos nada diziam a Trump, e defendia uma política externa unilateral, apoiada na mais pura realpolitik. Trump identificava-se mais com Putin do que com Merkel, e ignorou a violação dos direitos humanos em Hong Kong, apesar do conflito comercial com a China. Se fosse no seu interesse, faria um acordo de coexistência pacífica com Pequim, independentemente de qualquer consideração de ordem ideológica.

Biden é o oposto de Trump. Foi educado na Guerra Fria, lutou pela vitória dos EUA contra a União Soviética, acredita na NATO e em alianças com países democráticos. Trata a Rússia como uma ditadura e ataca o regime chinês pelas violações dos direitos humanos. Muitos esqueceram a natureza de Biden porque foi Vice-Presidente de outro Presidente pós-Guerra Fria, Obama. Mas Biden olha para o mundo de um modo muito diferente do que fazia Obama.

As circunstâncias políticas da eleição de Biden contra Trump reforçam a visão da política mundial que sublinha o confronto entre as democracias e as ditaduras. O Partido Democrata passou quatro anos a afirmar que Trump ameaçava a democracia norte americana, e celebrou a eleição de Biden como o regresso da “América livre e democrata.” Ora, um Presidente que salvou a democracia americana deve, sem qualquer hesitação, lutar pela promoção da democracia no mundo contra as ditaduras. Para Trump, bastava uma convergência de interesses para fazer acordos com a China. Para Biden, as diferenças ideológicas entre os Estados Unidos e a China (e a Rússia) não são ultrapassáveis. O futuro será marcado pelo conflito entre as duas potências.

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Mas há uma segunda contradição. Todos garantem que a Guerra Fria acabou, e chegou ao fim na Europa sem qualquer dúvida, mas as mesmas pessoas também nos dizem que o centro da política mundial se deslocou do Atlântico e da Europa para o Pacífico e a Ásia, o que também é verdade. Mas se a Guerra Fria acabou na Europa, ainda dura na Ásia. A divisão das Coreias mantém-se e a China continua a ter uma ditadura do partido comunista. Convém não esquecer que a Guerra Fria na Ásia começou com a guerra da Coreia e com a conquista do poder pelo partido comunista chinês. A consistência analítica não nos permite dizer que a Ásia se tornou na região mais relevante da política global e, simultaneamente, recorrer a uma visão euro-cêntrica da Guerra Fria.

Como já se viu, Biden e a sua equipa diplomática olham para o confronto com a China como a continuação da Guerra Fria com a União Soviética. A política americana vai colocar uma enorme pressão na Europa. A Trump era fácil e popular dizer que não. Mas a Biden é mais difícil. Muitos na Europa não têm estomago para um novo confronto global ideológico. Gostariam que a Alemanha e a União Europeia fossem uma espécie de grande Suiça, e fizessem negócios com todos, democracias e ditaduras. As sanções de segunda feira, da EU contra a China e de Pequim contra Bruxelas, mostram que as aspirações helvéticas na Europa não serão fáceis de concretizar.

Há ainda um último ponto interessante. Tal como nos Estados Unidos, com Biden, na Europa também é sobretudo o centro e o centro esquerda que olha para o regime chinês como uma ameaça ideológica para a Europa. No Parlamento Europeu, são os grupos liberal (de Macron), os verdes e os socialistas que lideram a oposição ao acordo de investimento entre a UE e a China, o qual deverá ter acabado antes de nascer por causa do confronto das sanções.

E Portugal no meio disto tudo? A decisão mais importante será a concessão do Porto de Sines. Antes de qualquer tentação de conceder a concessão a uma entidade chinesa, ou a um consórcio com chineses, o governo português deve olhar para as políticas chinesas dos governos e dos partidos da sua família política, na Europa e nos Estados Unidos.