Lembram-se do filme “Os Deuses devem estar loucos”? Aquele em que, algures em África, um homem acha que uma garrafa de coca-cola que lhe bate na cabeça é um sinal divino? Rimo-nos todos com o absurdo da cena, longe de imaginar que poucos anos depois estaríamos a viver realidades semelhantes num mundo supostamente muito avançado.

Vem isto a propósito da reacção, mais comum do que se imagina, à vacina para a Covid-19 que começa a ser aplicada no nosso país. São, infelizmente, muitas as pessoas, supostamente educadas e instruídas, que alinham na tese conspirativa de que a vacina é um novo inimigo escondido posto a circular para nos manipular.

Não sou cientista nem percebo nada de vacinas, nem do processo necessário para a sua execução. Nunca achei útil dedicar-me a esse estudo que, manifestamente, não faz parte dos meus interesses profissionais. Deixo essa ciência para os cientistas e médicos em quem confio e que me recomendaram dezenas de vacinas a mim e aos meus filhos. Todas tomadas de acordo com as indicações e que nos protegeram de doenças que outrora mataram milhares de pessoas no mundo inteiro.

Confiança é a palavra-chave para podermos viver de forma saudável neste mundo. Começamos por confiar nas nossas mães, que muitas vezes nos fizeram comer o que não gostávamos, mas nem por isso os sabores amargos nos fizeram duvidar do amor incondicional que elas têm por nós. Depois confiámos noutros adultos, médicos, engenheiros, arquitectos, farmacêuticos, condutores de transportes públicos e muitos outros. A verdade é que não acordámos de manhã, ao longo da nossa vida, a achar que o mundo conspirava contra nós.

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O mundo entretanto mudou e, achávamos nós, evoluiu. Mas eis que o “novo normal” trouxe consigo o absurdo e um significativo número de pessoas no mundo inteiro que, incomodadas com o sistema, decidiram resolver a sua insatisfação com uma realidade inventada e virtual. As novas tecnologias, neste caso, serviram para estupidificar as pessoas mais insuspeitas.

Neste mundo virtual, infelizmente na moda, nada é o que parece. Tudo foi tramado algures nas nossas costas para nos prejudicar. A pandemia é a efabulação final para nos retirar a liberdade e a vacina, claro está, é o veneno fatal.

Os crentes destas teorias mostraram na passada semana ao que o absurdo nos pode levar. Depois de anos a acreditarem que há enviados por Deus para pôr o mundo na ordem outra vez, o seguimento cego e irrazoável levou-os a uma invasão selvagem do Capitólio, a casa da democracia norte-americana. Quais trogloditas irracionais, partiram tudo, empoleiraram-se nas cadeiras dos congressistas e gritaram vitória. Triste espectáculo.

A cena deveria ter sido bastante para desenganar os muitos, que por esse mundo fora, incluindo aqui em Portugal, julgam que este caminho irracional é a solução para resolver os males da democracia. Mas até para justificar o triste espectáculo de Washington já se inventou uma narrativa. Negando tudo o que esteve à vista do mundo, com o Presidente derrotado nas urnas a instigar a turba a dirigir-se ao Capitólio, os crentes irracionais vieram explicar que os “maus” não passavam de forças ocultas, infiltradas no meio dos “bons” para desacreditar os defensores da verdade.

A continuarmos assim, preparemo-nos todos para um dia destes nos virem dizer que dois mais dois afinal não são quatro. Isso é uma grande conspiração do inimigo.

Podia ter tudo muita graça se fosse no tal filme de que falei no início, mas na realidade, já houve gente que morreu por causa desta brincadeira. Quatro pessoas no Capitólio, que se juntaram aos muitos que ao longo da história foram perseguidos por causa da realidade e da ciência, como Galileu quando disse ao mundo que a terra era redonda. Mentira, disseram eles. Mas afinal, não é que a terra é mesmo redonda?