No último Congresso da Ordem dos Médicos, ocorrido há umas semanas, tive ocasião de poder participar numa sessão sobre desafios para a Oncologia, na companhia de ilustres colegas. Rapidamente nos pusemos de acordo sobre o que gostaríamos de fazer, o que nos falta, o que temos feito para obviar às carências que temos e sobre a nossa vontade de continuar a tratar doentes com cancro no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Estava ali um grupo de “resistentes”, nados e criados no SNS, com intervenções nas áreas da oncologia de tumores hematológicos e não-hematológicos, pediátricos, com radioterapia e isótopos, com maiores ou menores doses de quimioterapia, mais ou menos extensão de irradiação, mas todos com muita vontade de continuar a lutar por aquilo em que acreditamos: tratar todos de forma efetiva e segura, em tempo útil, idealmente com intenção curativa e sempre, enquanto a vida do doente justificar cuidados.

Da nossa conversa sobressaiu a necessidade de nos aproximarmos da Medicina Geral e Familiar, de encurtar distâncias geográficas, de generalizar o conceito de que os cuidados paliativos não são apenas destinados a doentes em fim de vida, bem pelo contrário, e de melhorar o acesso em tempo útil a cuidados especializados para todos os doentes com suspeita de cancro ou cancro confirmado e a necessitar de tratamento, por definição, urgente. Os tempos garantidos são demasiado longos e nem sequer são cumpridos.

A necessidade de estendermos as nossas áreas de influência para lá de Portugal, prestando assistência a residentes estrangeiros e a pessoas oriundas dos PALOP também tem aumentado a procura, até porque em Portugal o princípio da universalidade é mesmo aplicado e o SNS é essencialmente gratuito, no local de contacto, para todos. Só que há questões permanentes com os PALOP, nomeadamente a falta de apoio por parte dos Países de origem, com a louvável exceção de Cabo Verde, que tornam tudo muito complicado e difícil para os doentes e seus acompanhantes.

Todos nos queixámos dos Enfermeiros que nos faltam e da incapacidade frustrante de cativar os que formamos a ficarem no SNS. Por exemplo, deveria ser oferecida a oportunidade de especialização em oncologia para todos os enfermeiros que trabalhem em unidades de oncologia. Lamentámos a lentidão e ineficácia dos sistemas de comunicação eletrónica e de informatização, protestámos pelas inúmeras tarefas burocrático administrativas que nos tolhem o tempo destinado a ver, ouvir e falar com doentes.  Aguardamos, sofregamente, pela tal liberdade de contratação de que os hospitais EPE estarão dotados e não conseguem exercer. Mas, note-se, não basta a liberdade de poder contratar, tem de haver um sistema de incentivos que envolvam remuneração, aumento do tempo de descanso anual, hipóteses de formação e especialização que fixem o pessoal, sendo evidente que a fixação de pessoal tem de contemplar equilíbrios e necessidades multiprofissionais, não se esgotando no binómio enfermeiro-médico. Precisamos de informáticos, físicos, estatistas, terapeutas, psicólogos, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico e terapêutica, biólogos, etc. A oncologia é um processo de intervenções sequenciais que envolve multidisciplinaridade e multiprofissionalismo.

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Fui eu, nem sequer o mais rebarbativo, que acrescentou problemas na avaliação de medicamentos e a necessidade de dotar o INFARMED de mais meios profissionalizados e em tempo completo. Nunca me canso de pedir uma agência nacional de avaliação de tecnologias de saúde com funções semelhantes às da NICE. Mesmo no que concerne a definição de preços e de capacidade de pagar, espanta-me como os ministérios das da saúde e finanças ainda não perceberam que o sistema de preços de referência europeu é uma fraude, uma mentira escondida atrás de preços secretos, que alimenta especulação e só se mantém porque os Estados são caloteiros e pagam tarde. Pior, o nosso sistema de capping – demasiado complexo para explicar aqui – com devolução de ganhos extra ao SNS, quando acima de um determinado número de doentes tratados, é ineficiente. As compensações que são devidas, quando o cap é ultrapassado, não chegam a quem deveriam ser entregues, a cada hospital, e quando deveriam ser entregues. Acresce que este sistema que envolve notas de crédito apenas garante que se compre o mesmo produto, continuando a beneficiar o mesmo laboratório, em vez de ser uma devolução em cash ao SNS. Digamos que é um sistema de desconto encapotado e suportado num preço confidencial que distorce a concorrência nacional e internacional. Sinceramente, se há área onde a simples taxação de ganhos excessivos deveria funcionar é o da indústria financeira, acoplado a um sistema transparente de incentivos fiscais que deveria estar escorado em investimentos que os laboratórios deveriam fazer na saúde e no SNS. Todos ficariam mais contentes.

Estamos com problemas graves em termos de atrasos no tratamento de doentes com cancro. Esses atrasos matam1. É certo que o problema da COVID-19 veio agravar, em todo o mundo2-4, o acesso aos doentes com doenças crónicas, cancro em particular, mas em Portugal nem isso temos quantificado, é tal o nosso atraso em registo e acompanhamento de dados. Temos uma “ideia”, quase nunca mais do que isso. E, sublinhe-se, o problema dos doentes com cancro deve também ter afetado o seguimento dos sobreviventes já tratados5.

As esperas e atrasos estão radicados na falta de pessoal, em estruturas inadequadas e de capacidade limitada, na incapacidade de ter previsto e planeado respostas em face de uma procura que se sabia ser crescente. E não é eticamente aceitável que se venha falar em recuperação de rastreios quando, mesmo com a limitadíssima capacidade nacional de prevenção secundária do cancro em Portugal, temos mulheres com cancros da mama detetados em rastreio a esperar mais de 1 mês por consulta de oncologia acrescentados de mais de 4 meses a aguardar operação.

O caso do IPO de Lisboa é o exemplo mais gritante do que tem sido abandono pelo proprietário, o Estado. O relatório do Orçamento de Estado para 2022 tem escrito que “em 2022, o Governo dará continuidade aos trabalhos necessários à concretização de diversos outros investimentos (esta formulação é política e factualmente vazia de significado prático), atualmente em desenvolvimento, como…construção do Centro de Ambulatório de Radioterapia do Centro Hospitalar de Tondela-Viseu (já tem lá placa “inaugurada” desde o 1º governo Costa, em 2017),  a edificação do novo Departamento Materno Fetal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (o Senhor Presidente da Câmara de Coimbra ainda deve estar
à espera de que lhe digam onde e quando), a ampliação do Instituto Português de Oncologia de Lisboa…”. Ora, no caso do IPO de Lisboa, em situação de catástrofe, o investimento não foi considerado estruturante, já que não consta do quadro Quadro 4.16. Investimentos Estruturantes — Administração Central, nem vem mencionado, em lugar algum do texto do Relatório, para quando, com quanto e como será financiada e acabada a construção do novo edifício do IPO de Lisboa, incluindo equipamento, o tal modesto e novo edifício que já esteve para ser (em tempos idos) um novo IPO completo. Promessas, enfim, é o que sabemos.

Lisboa nunca teve um Moreira que se queixa de não ter TAP no Porto, sendo que em boa verdade não precisa dela. Tivemos um Medina que agora é das finanças do País inteiro e não será de esquecer que nenhum dos candidatos nas últimas eleições para a Câmara de Lisboa teve o interesse de visitar o IPO da Capital. O Dr. Medina que já lá tinha ido prometer o que não cumpriu, mau augúrio, teve o bom gosto de lá não voltar. Quanto ao Porto, o Dr. Moreira pode estar descansado porque o IPO nortenho tem pisos fechados de que não precisa enquanto em Lisboa os doentes esperam e desesperam, chegando a ter de ser transferidos por falta de capacidade de acolhimento (solução que merece a minha aprovação).

Estas diferenças regionais de atendimento e de capacidade levam-me a outra questão que também foi debatida. Não vale a pena sustentarmos a ideia de que o atendimento oncológico é e pode ser igual em todo o lado do retângulo. Nem deve ser. Há áreas de tratamento e diagnóstico que devem ser concentradas em centros de referência. E os País não pode ter quase mais centros de referência do que hospitais onde há centros de referência. Outra fraude Lusa. É tudo excelente. Não é, é mentira. E a mentira é perpetuada enquanto não se instituir recertificação e pactuar em exames de saída de internato de especialidade em que todos têm mais de 19,88 em 20 valores possíveis, uma palhaçada travestida de justiça, notas que nada traduzem da realidade. Acabe-se com a nota nos exames de saída, instituam-se classificações para o exame de assistente graduado e volte-se a contratar diretamente sem a tontice de uma suposta “prova” administrativa em que os candidatos são colocados pela nota do exame de saída. Perceberam porque todos têm de ter quase 20?

Falámos em Investigação, uma das áreas carentes e mais desiguais da oncologia nacional. Mas como fazer investigação se estamos a tentar contratar coordenadores de estudos, umas das peças fundamentais para ter investigação clínica, a oferecer pouco mais do que ordenado mínimo? Ou a propor esquemas obnóxios de bolsas e outras manigâncias para fintar o ministério das finanças e o tribunal de contas que, diligentemente, persegue as inscrições contabilísticas dos Hospitais? Investigação sem dinheiro à cabeça é muito difícil e até para poder concorrer a programas é preciso ter uma estrutura prévia, material e humana. Por não termos capacidade competitiva, estamos a perder milhões de Euros e alguns doentes a não terem acesso a medicamentos de teste em fase precoce. São conhecidas as minhas dúvidas sobre a “panaceia” investigacional, mas há que ter a seriedade de admitir que o ministério socialista da saúde não tem ligado peva à investigação clínica.

Acabámos com um problema com que começámos a nossa conversa, o da dificuldade de generalização de um processo clínico único eletrónico a todo o SNS, idealmente a todo o sistema de saúde. No relatório do OE 2022 lê-se: “O desenvolvimento da estratégia para a modernização dos sistemas de informação, destacando-se o desenvolvimento do Registo de Saúde Eletrónico e a desmaterialização e integração dos resultados dos exames complementares de diagnóstico no processo clínico eletrónico”. Estamos todos à espera. Se o sistema de prescrição eletrónica de medicamentos, iniciado por um governo PSD-CDS pôde ser concretizado pelo governo PS (há que aplaudir o que foi bem feito), não percebo porque três governos de PS, agora com um de maioria absoluta, não resolverão esta questão magna e estruturante.

Recapitulemos:

  1. A recuperação de atrasos gerados no diagnóstico e tratamento oncológico pela COVID-19 tem de ser uma das primeiras prioridades.
  2. O acesso em tempo útil tem de ser garantido e melhorado para todos os doentes com suspeita de cancro ou cancro confirmado e a necessitar de tratamento, por definição, urgente. Os tempos garantidos são demasiado longos e nem sequer são cumpridos.
  3. Os doentes oriundos dos PALOP têm de ser acompanhados financeira e socialmente pelas suas Embaixadas em Portugal.
  4. Os hospitais do SNS estão a ser sangrados de recursos humanos especializados. Tem de haver contrapartidas remuneratórias para fixar pessoal.
  5. A fixação de pessoal tem de contemplar equilíbrios e necessidades multiprofissionais, não se esgotando no binómio enfermeiro-médico. Precisamos de informáticos, físicos, estatistas, terapeutas, psicólogos, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico e terapêutica, biólogos, etc. A oncologia é um processo de intervenções sequenciais que envolve multidisciplinaridade e multiprofissionalismo.
  6. Precisamos de uma agência nacional de avaliação de tecnologias de saúde, com funções semelhantes às da NICE, e não apenas do INFARMED.
  7. Temos de intervir, a nível Nacional, de forma diferente na fixação de preços de medicamentos e outras tecnologias, já que a nível Europeu não há consenso.
  8. Temos de melhorar, aumentar e recuperar as estruturas de atendimento.
  9. A população tem de ter garantias de equidade no acesso e de igualdade na qualidade dos cuidados.
  10. Os ditos centros de referência têm de ser revistos. Não é a proliferação da designação que garante a qualidade e especificidade do atendimento.
  11. Para haver investigação clínica, o Estado tem de investir nos cuidados e nos meios humanos e técnicos necessários para a sua realização. Antes de termos auto-financiamento, pela produção dos ensaios, terá de haver investimento inicial pelo proprietário do SNS.
  12. Os cuidados paliativos não são apenas destinados a doentes em fim de vida.
  13. Temos de conseguir maior articulação entre setores de cuidados primários, hospitalares e continuados.
  14. Para isso, a generalização de um processo clínico único eletrónico a todo o SNS, idealmente a todo o sistema de saúde, é outra das primeiras prioridades e não pode passar para lá de 2022.

O governo em funções não tem, nem terá desculpas. O falhanço do PS no governo será o falhanço de Portugal e não lhes poderemos perdoar mais falhas.

Fernando Leal da Costa

1) Timothy P Hanna et al. Mortality due to cancer treatment delay: systematic review and meta-analysis BMJ 2020;371:m4087 http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m4087.
2) COVIDSurg Collaborative.  Effect of COVID-19 pandemic lockdowns on planned cancer surgery for 15 tumour types in 61 countries: an international, prospective, cohort study Lancet Oncol 2021; 22: 1507–17.
3) Talía Malagón et al. Predicted long-term impact of COVID-19 pandemic-related care delays on cancer incidence and mortality in Canada Int. J. Cancer.2022;150:1244–1254.
4) Brian R. Englum et al. Impact of the COVID- 19 pandemic on diagnosis of new cancers: A national multicenter study of the Veterans Affairs Healthcare System Cancer2022;128:1048-1056.
5) Bogda Koczwara. Cancer survivorship care at the time of the COVID-19 pandemic The Medical Hournal of Australia https://doi.org/10.5694/mja2.50684