5 de fevereiro, sexta-feira: tudo está normal. Não estou contaminada, nunca estive, pretendo nunca estar. Tudo caminha bem. Vamos trabalhando em São Paulo, como se isso não fosse um pleonasmo. Máscara sempre, álcool sempre, água e sabão sempre. Sapatos que foram à rua não circulam em casa. Tudo nos conformes, como nos últimos 12 meses. Estou segura.

6 de fevereiro, sábado: tudo certo. Fiz boas compras no supermercado, cheguei em casa e limpei todas as coisas com álcool, uma por uma. Já se tornou num hábito, estranho seria não limpar. Lavei bem todas as frutas. Passei spray de limpeza em cada um dos sacos de plástico. Fiz minha corrida com máscara e comi bem. Tudo segue caminhando da forma devida.

7 de fevereiro, domingo: vou visitar meus pais. Coloco minha melhor máscara, arrumo os cabelos, passo perfume e entro no carro. Passo álcool spray no volante, no câmbio, no freio de mão. Estaciono. Deixo os meus sapatos do lado de fora da casa deles. Cumprimento-os com o cotovelo e com um sorriso que só se vê nos olhos. Fico longe. Tudo certo, já estou quase habituada.

8 de fevereiro, segunda-feira: vou cedo para o escritório. Lavo bem as mãos quando chego. Cumprimento meu sócio de longe. Passo álcool na mesa, por via das dúvidas. Debatemos um caso de longe. Saio de lá no fim da tarde. Foi um bom dia. Minha tia vem me visitar. Pedimos uma pizza. Ela come na mesa, eu como no sofá. A janela está aberta. Tudo bem.

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9 de fevereiro, terça-feira: estou no escritório à tarde. Sinto minha garganta arranhar um pouco, como depois de um longo engasgo. Será que engasguei hoje? Não me lembro. Preciso tossir um pouco. Estranho. Já, já passa. Duas horas mais tarde, uma dor no quadril. Isso não me parece normal. Mas não vou surtar. Vou para casa. Paro na farmácia, compro um termómetro. Não tenho febre. Está tudo bem. É paranóia minha.

10 de fevereiro, quarta-feira: acordo com a mesma tosse. Com a dor no corpo piorada. Com dor de cabeça. Não tenho vontade de me levantar. Eu não sou assim. Eu sempre me levanto animada. Isso não está bom. Mas como? Eu tomei tanto cuidado. Será possível? Vou fazer o teste. Espera longa. Angústia. Positivo. Me sento, fico com os olhos marejados. Onde foi que eu errei? Preciso contar aos meus pais. Meus irmãos. Colegas de escritório. Suspiro, invadida pelo pavor de ter infectado alguém. Dores de ouvido. Dores de cabeça.

11 de fevereiro, quinta-feira: acordo com dor em tudo. Me obrigo a levantar. Tomo um banho. Um analgésico. Como uma fruta. Bebo muita água. Vou melhorando aos poucos. Me sinto mais disposta. Tento fazer uma ligação de vídeo. Fico exausta. Tento colocar um parafuso no pé da televisão. Transpiro, fico ofegante. Dou notícias aos meus pais. Imploro para que eles não apresentem nenhum sintoma. Me angustio. Vamos lá, sempre em frente.

12 de fevereiro, sexta-feira: acordo bem. É melhor nem dizer isso em voz alta. Não tenho dores. Vou comer alguma coisa. Descubro que, além de não ter dores também não tenho paladar. Tudo bem, segue o jogo. Já era esperado. Vou lavar louça. Fico em pé 15 minutos e estou exausta. Me sento no sofá e ali permaneço. Quantas surpresas ainda virão? Não faço ideia. Estou com medo? Sim. Leitores de alma podre farão comentários tão podres quanto eles? Certamente. Não me importa minimamente. Deus está vendo. Respiro fundo. Não sei onde errei. Um botão de elevador, um momento sem máscara, uma trégua qualquer. Não sei. Me culpo. Bebo meus líquidos. Como meus legumes. Entrego meus textos. Um dia de cada vez. Vai dar certo. Tem que dar.