1 Têm sido eles a roer o osso, que foi o que encontraram no Largo do Caldas, quando lá arribaram após a vitória no congresso de Aveiro, em Janeiro de 2020. A carne fora saboreada bem antes, pelos activíssimos descontentes que agora habitam os palcos mediáticos mas que então lideravam e co-lideravam o partido. Os descontentes parecem apenas esquecer-se que nós nos lembramos. O “nós” surgir-lhes-ás obviamente como um abuso mas não é: exprime a imensa quantidade de gente que, tal como eu, acompanhou, viu, ouviu, como os então maestros da orquestra centrista se ocuparam durante alguns anos, em desfazer política em vez de fazer política. Acabando por atirar com o seu próprio partido de uma ravina de onde ele se precipitou de uma altura de 18 deputados para se estatelar num chão de 5 parlamentares.

Há que ser intelectualmente sério e ser sério neste caso será obrigatoriamente lembrar as coisas como o foram e com estes números na mão. Sucede ainda que nem a passagem pelo CDS dos hoje activíssimos descontentes foi de meses — durou, repito, anos –, nem a queda do partido foi fruto de acaso ou má sorte. Foi antes a consequência de determinadas escolhas ideológicas e de um intencional critério co-assinado pelo agora descontente-mor Adolfo Mesquita Nunes que então teleguiava Assunção Cristas: da estratégia à agenda, passando pela comunicação esteve ali Adolfo, em corpo e mente inteiros. O óptimo ex-secretário de Estado do Turismo foi afinal bem menos inspirado a conduzir ou a partilhar a condução do CDS mesmo que por vezes só ao ouvido de Assunção Cristas. Mas ao ouvido, ao telefone ou presencialmente o seu poder era, foi, imenso. Não correu bem — acontece aos melhores e aos piores.

Depois um dia — no seu pleníssimo direito — foi à vida, tratar da sua. E agora… quer fazer o quê com o CDS? E para quê ? Não ficou claro. Que faz correr um turbulento Adolfo? Correr politicamente pode ser bom sinal e não é pecado. Mas correr como e para quê? E que pode querer um liberal dos quatro costados de um partido que nunca o foi assumidamente e nada indica que possa ou queira vir a sê-lo? Espantosamente não se ouviu ninguém a formular esta pergunta ao activíssimo descontente do CDS — nem a nenhum dos seus arautos que tão efusivamente o ecoam por aí. Ou sequer a questioná-lo sobre um passado que ele co-encenou. Pelo contrário: viu -se a esponja a ser passada sobre tudo isso ao som das trombetas de uma desejada futura glória: a vitória da inteligência, da cultura, da experiência dos “conhecidos”, contra a impreparação e imaturidade da geração pouco dotada e nada “conhecida” que hoje está ao leme no Caldas.

Logo se verá o que sucede mas pelo sim pelo não, fica este lembrete do que foi ocorrendo com a família centrista, antes da entrada em cena, há cerca de um ano, dos impreparados. Ou de como o hoje irrelevante peso eleitoral do CDS não tem só um responsável, não nasceu há meses, nem tem sido uma história bem contada. Tão convenientemente mal contada que só as vezes se sublinha que o parto relativamente inesperado de dois partidos à direita do PSD entalou, não se sabe se irreversivelmente, o CDS numa tenaz de aço.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

2 Isto dito, parece mais que evidente que o actual líder Francisco Rodrigues dos Santos não se activou por aí além na procura — e no espaço — para três ou quatro ideias fortes — com a Educação à cabeça, por exemplo, ou a justiça; nem se afadigou com meia dúzia de iniciativas que pudessem ter deslocado o seu partido para ribalta do pensamento político ou do debate público. E não será certamente encafuado numa cápsula emudecida e com pouco ar que o CDS ampliará ou sequer inspirará os seus. Também é certo — está à vista – que como a comunicação social desdenha “este” CDS preferindo-lhe uma mais mediática e flamante oposição, não posso excluir que tenha havido acções, ideias, debates, iniciativas que tenham passado despercebidas. Mas… ou não houve – e é imperdoável – ou não fomos delas informados – e é igualmente imperdoável.

3 Se há pessoa que eu tivesse seguido no CDS foi Adolfo Mesquita Nunes. Aprecio a inteligência, a agilidade mental, a desenvoltura política e ele tinha-as; desafiei-o um dia para almoçar com alguém muito relevante na sociedade civil portuguesa, segui a sua última campanha eleitoral como candidato autárquico ao município da Covilhã, apresentei-o a amigos que tinham vontade de o conhecer. Tomei pé e sentido numa inconsistente e demasiado indefinida vontade sua de se candidatar à Presidência da República, facto político que teria merecido a minha atenção cívica (desgostando os que muito amam Marcelo e contrariando quem já nessa altura desconfiava da “direita” civilizada, liberal, moderna, sedutora e tutti quanti de que Mesquita Nunes seria o disponível rosto). Para grato contentamento do PS que logo começou a agir em conformidade (como se observou).

São escolhas. E também logo se verá se vai valer a pena a registá-las.

A propósito de escolhas lembro-me muitas vezes de uma tirada de Jacques Chirac num debate televisivo com Lionel Jospin na campanha presidencial que os opunha: gabava-se Jospin de contar com o apoio de um intelectual, muito “air du temps”, muito cosmopolita e muito arejado, Alain Minc (que mais tarde eu entrevistaria em Lisboa), quando Chirac, imperturbável, lhe respondeu: “ah então guarde-o bem, guarde-o bem para si”. As vezes ganham-se eleições escolhendo dispensar o ar do tempo.

4 A questão da eutanásia teria sido muito provavelmente a questão mais impressivamente complexa e delicada com que jamais me teria confrontado se fosse deputada. Pela sua natureza encaro-a como julgo que ela só pode ser encarada: uma questão civilizacional antes do mais, ou mesmo, indiscutivelmente civilizacional. E nesse sentido a sua aprovação é um tão evidente, flagrante, retrocesso que me dispenso de invocar a condição de crente ou a minha pertença à igreja católica, apostólica romana, da qual nunca me desliguei. Tive ocasião de discutir publicamente este dificílimo tema com José Manuel Pureza e já o reflecti sobre mais do que um ponto de vista, comigo própria ou com outros.

Mas hoje, só estas breves duas notas sobre o acto de escolher. Falo da pressa, do “despacho”, ou melhor, da urgência com que a esquerda radical levando o PS a reboque escolheu tratar este assunto. Como quem diz que “a lebre (uf!), já está corrida” – o que me suscitou uma quase repulsa. E a oportunidade – a escolha dos terríveis dias de hoje – que não pode senão provocar uma repulsa inteira, sem o“quase”. Mais chocante é impossível, e dizê-lo num país onde todos os dias os seus governantes nos chocam com as suas mentiras e os seus decisores nos agridem com a sua conduta, é dizer tudo.