Em Janeiro deste ano, mudei-me para Madrid e pude, finalmente, começar a observar de perto a política espanhola. Apesar da proximidade geográfica, o conhecimento geral em Portugal do que se passa deste lado da fronteira é, muitas vezes, fraco. Eu próprio seguia com mais atenção a política nacional de países europeus mais longínquos do que a dos nossos vizinhos. Espanha vive em 2023 um ano particularmente interessante do ponto de vista política, com muitas mudanças à vista. Em Maio, realizar-se-ão eleições municipais e autonómicas e, mais tarde, provavelmente em Novembro, terão lugar as eleições gerais para escolher o novo governo. Há várias observações a fazer para compreender o que se está a passar em Espanha.

Em primeiro lugar, apesar de toda a retórica, caso consigam uma maioria parlamentar, PP e Vox não hesitarão em fazer uma coligação a nível nacional. De resto, todos os sinais indicam que será mais fácil a formação de uma coligação de direita do que à esquerda. Todavia, a direita espanhola é bastante diferente da portuguesa. Por um lado, o PP tem uma posição bastante mais liberal do que o PSD que é, no essencial, um partido estatista. Dentro do PP espanhol, contudo, existem alas profundamente reaccionárias nos valores, com uma com forte penetração da Opus Dei, herdeira, em grande medida, do Franquismo. Apesar da transformação radical de uma sociedade patriarcal para uma sociedade em que, por exemplo, as mulheres ocupam cargos políticos de altíssimo nível, a Igreja Católica continua a ter uma força social bastante mais forte do que em Portugal. Num qualquer Sábado, é possível ver em Madrid centenas de milhares de pessoas a manifestarem-se a favor de causas conservadoras, como por exemplo, o aborto. Ao contrário de Portugal, em Espanha, a rua não é um exclusivo da esquerda. A direita também tem capacidade de mobilização popular.

Por isso mesmo, a direita espanhola tem uma base orgânica e social muito consistente, o que dá a ambos os partidos uma força na sociedade que PSD, IL e Chega estão muito longe de ter. Diferentemente do Chega, liderado por um político carismático mas com poucas convicções, que rapidamente mudará o discurso quando se coligar com o PSD, o Vox é liderado por Abascal, um líder com convicções centralistas profundas. Estas convicções surgem da sua história de vida, quando a sua família sofreu às mãos da ETA as agruras do terrorismo basco. Para além disso, ainda diferentemente do Chega, o Vox tem imensos quadros políticos intermédios que tornarão a sua participação no governo e a tomada do aparelho de estado mais consequente em termos de políticas públicas. Mesmo que um dia chegue ao poder, o Chega não tem, nem terá, quadros intermédios para fazer política.

Em segundo lugar, um dos dramas do sistema partidário em Espanha, e, de resto, uma das fontes da polarização, é a existência de uma falha de mercado na competição política. Existem dois blocos de competição, à esquerda e à direita, com dificuldades de competição inter-bloco. A polarização afectiva, isto é, a percepção de que os membros da oposição têm posições ilegítimas, imorais e essencialmente más sobre a democracia, aumenta as dificuldades de criação de um centro moderado que possa fazer reformas políticas cuja legitimidade seja reconhecida igualmente por todos. A falha de mercado, contudo, não é apenas do lado da oferta. Também do lado da procura, os cidadãos parecem não estar disponíveis para construir partidos de centro. As três tentativas de formação de partidos políticos de centro, liberais na economia e nos costumes, o Centro Democrático y Social, Partido Reformista Democrático e, mais recentemente, o Ciudadanos, deixam órfãos muitos eleitores.

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Em terceiro lugar, a esquerda espanhola está, como sempre, em convulsão. Depois de ter sido entronizada por Pablo Iglesias, o guru espiritual da extrema-esquerda espanhola, que cumpre um lugar funcionalmente equivalente a Francisco Louçã em Portugal, como a sua sucessora, Yolanda Diaz virou-se contra o criador. No último domingo apresentou a coligação eleitoral Sumar, que junta praticamente todos os pequenos partidos à esquerda do PSOE numa tentativa de evitar o desperdício de votos. Obviamente que muitos partidos juntaram-se ao Sumar por terem percebido que estavam a chegar ao fim da linha enquanto proposta política. O exemplo mais acabado são os partidos de índole regional, cujas agendas políticas, num país fortemente descentralizado, estão esgotadas.

Tal como em Portugal, o sistema eleitoral espanhol penaliza a dispersão de votos. A formação da coligação Sumar é, possivelmente, a única via para a esquerda manter-se no poder. De forma expectável, o Podemos decidiu não entrar na coligação, arriscando, assim, fraccionar a esquerda e terminar com a única possibilidade de impedir que a direita chegue ao poder. O ego de Iglesias, que aparentemente ainda não percebeu que o sucesso do Podemos é o fruto de um conjunto de circunstâncias irrepetíveis, impede-o de libertar espiritualmente o partido da sua tutela e torná-lo parte da coligação que poderá, eventualmente, continuar a governar o país em coligação com o PSOE.

No meio de tudo isto, Sanchéz apresenta-se como o político moderado que pode cumprir uma dupla função. Por um lado, ser a barreira contra a subida da direita radical do Vox ao poder, cujas consequências serão maiores em termos de políticas públicas do que uma eventual subida do Chega ao poder. Veja-se, a título de exemplo, o que aconteceu em Castilla-León com a tentativa de copiar as piores práticas da direita americana nas políticas do aborto. Por outro lado, Sanchéz apresenta-se como o adulto na sala que pode controlar a extrema-esquerda. Veja-se como, pragmaticamente, nos últimos meses, decidiu descolar do Podemos, seu parceiro de coligação, para votar, juntamente com o PP, para a reversão da lei solo sí es sí, cujas consequências do extremismo feminista se faziam sentir no sistema penal. O cenário que acabo de descrever parece semelhante ao de António Costa enquanto garantia política contra os extremos. A diferença é que, em Espanha, os extremos, de facto, contam e têm influência na rua e na política.

O cenário político em Espanha é muitíssimo interessante e, de certa maneira, dá-nos pistas sobre o potencial futuro político de Portugal. Comparando com Portugal, existem forças políticas mais radicais e, em larga medida, parte da direita política e social é saudosista e infrequentável. Todavia, o país beneficia fortemente de ter vários centros de poder económico, social e político que criam contrapesos e fomentam elites próprias. A existência de uma rede de cidades médias, economicamente pujantes, diminuiu o centralismo e aumenta a competição entre elites o que, a prazo, aumenta a qualidade das decisões tomadas no país.