Anda o país por estes dias a questionar-se se é racista ou não, mas a verdade é que em poucas ocasiões a expressão, há que senti-lo na pele, teve uma literalidade mais oportuna. Se o movimento #BlackLivesMatter torna o tema actual, a mera existência de racismo, um dos mais deploráveis sentimentos que ainda grassa na humanidade, torna-o fundamental.

O Adolfo Mesquita Nunes escreveu há coisa de dois anos um artigo onde, sobre este tema, sinalizava um problema de conhecimento, por ausência de dados que ,objectivamente, nos dissessem mais sobre se há e, havendo, qual o nível de discriminação no acesso ao ensino, no acesso a profissões, no acesso à habitação ou no tratamento penal. Não estou com isto a defender – e ele também não –  que se use a variável étnica no Sistema Estatístico Nacional, já que isso provavelmente traria mais problemas que soluções, mas apenas a constatar que sem dados dificilmente se faz uma discussão informada e sem uma discussão informada, dificilmente vamos além de percepções enviesadas. Já nos Estados Unidos da América, por exemplo, esse problema não se coloca tanto, uma vez que há estudos estatísticos sobre etnias que nos esclarecem muito mais. E no que esclarecem, dizem-nos, desde logo, que os negros têm um rendimento mais baixo que todas as outras etnias.

Eu sei que muitos – e com razão – dirão que os Estados Unidos e Portugal são, também nesta matéria, realidades muito diferentes, mas uma coisa parece clara, cá e lá: a existência de uma relação entre racismo e outros preconceitos sociais (relacionados sobretudo com o nível socio-económico). Mais: se é verdade que não há dados em Portugal que nos permitam saber muito sobre o racismo, também é verdade que a olho nu podemos ver que a sociedade representativa é muito menos diversa do que a sociedade representada. E isto leva-nos à convicção que há pelo menos um problema de mobilidade social (que é, aliás, uma das piores da Europa).

Infelizmente, porém, esta proclamação activista de anti-racismo tem surgido à esquerda. E digo infelizmente, porque essa proclamação é enganadora e hipócrita. É enganadora porque se há posição política que tendencialmente defende liberdade na construção de projectos de vida – e de busca da felicidade individual – para todos, por igual, independentemente dos seus traços identitários e da sua origem, essa posição política é a liberal. Por outro lado, toda a narrativa anti-racista da esquerda, sendo profundamente identitária, tende a tomar uma característica identitária como toda a identidade; reduzindo a pessoa à variável que, em cada momento, mais lhe convém. Porque isso interessa mais aos seus propósitos ideológicos, de permanente conflito social, que à defesa da dignidade humana.

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Depois, é hipócrita, porque estando muito do preconceito étnico relacionado com o preconceito socio-económico, a esquerda age menos na mitigação deste e mais na empolação daquele. E nisto, lamento dizer, vai acompanhada por uma certa direita. Por exemplo, aquando da ignóbil discussão sobre a cerca sanitária à comunidade cigana – “a comunidade cigana acha-se acima das leis deste país e é um sério problema de segurança pública”, palavras do proponente – houve logo quem ,em função de uma experiência ou de um relato conhecido acerca de criminalidade perpetrada por alguém da etnia cigana, viesse confirmar esta aberração. Porém, ninguém se lembrou de apontar o dedo aos brancos, havendo vários desde logo no eixo Lisboa-Cascais e até na Ericeira, que cometeram crimes de muito maior alcance e com muitos mais lesados. Porque é que para uns a etnia é anátema e para outros irrelevante?

Na verdade, estou em crer que muito – não todo – do preconceito racista prende-se com a avaria do elevador social que penaliza mais umas etnias que outras; avaria essa que ghettiza. E o que ghettiza afasta, o que afasta aumenta a ignorância, a ignorância estimula o medo e o medo alimenta o ódio.

Ora, quem é que mais faz para manter o elevador social avariado? Quem defende o mérito, quem quer desonerar fiscalmente, libertando rendimento às famílias, quem defende políticas consequentes e avaliação na Educação e quem defende a responsabilização individual? Ou, pelo contrário, quem alimenta narrativas identitárias e colectivistas, quem reclama direitos sem contrapartida de deveres e quem põe em prática políticas laxistas, medíocres e indulgentes?

Visitemos, a título de exemplo, um fracasso confrangedor de políticas públicas em matéria racial, aproveitando já agora para desmontar o mito da boa gestão autárquica comunista: o Bairro da Jamaica. Se não conhecem, tentem pesquisar a localização do Bairro da Jamaica no Google Maps, para terem uma ideia de onde fica. Depois, após o insucesso da primeira pesquisa, experimentem Vale de Chícharos. Verificarão então que fica no Seixal e que a imagem que lhe serve de postal se situa na Rua 25 de Abril. Perguntem-se se aquela imagem, se aqueles “prédios” em tijolo num cenário de pura destruição e abandono, é digna de um país decente. Finalmente, para o caso de vos parecer relevante, o Seixal é um município governado pela CDU precisamente desde o 25 de Abril. Há 46 anos. Infelizmente, há amanhãs que tardam em cantar.

E não deixando o essencial para amanhã, eu tenho um sonho hoje. Um sonho de liberdade, de dignidade e de prosperidade. Um sonho em que homens e mulheres, de todas as cores, independentemente dos seus lugares de origem, possam livre e responsavelmente alcançar melhores condições de vida para si e para os seus. Um sonho em que cada um seja olhado pelos seus méritos e pelas suas falhas e não pela cor da sua pele, pelo seu género ou por outra característica qualquer da sua identidade.