Viveres tudo ao mesmo tempo, aqui e agora, deveria significar usufruíres o momento presente sem haver grandes preocupações com passado e futuro. Tem as suas virtudes. Ou muitas virtudes. E requer muito desprendimento e, até, uma frugalidade associada que deverias associar a tudo isto.

Eventualmente isto poderia articular-se com técnicas de meditação que te ajudariam a cultivar o foco e a atenção plena ao momento presente. A respiração, a monitorização e gestão de todos os pensamentos que emergem em ti, a noção das tuas sensações corporais várias, a realização de atividades quotidianas reinventadas ou habituais, mas às quais deves dar atenção plena, nomeadamente o caminhares, o alimentares-te, o tomares banho, o fazeres a barba, o penteares-te, entre tantas mais.

Adicionalmente, a eliminação da distração para viveres o presente é fundamental para evitares o desfoque. Desligares o telemóvel em vários períodos do dia, apagares o computador e evitares as multitarefas, focando-te numa de cada vez.

É a isto que chamo – nunca disse que o praticava – o aqui e agora. Viver o presente. E para isso é necessário usufruíres plenamente de cada momento em cada momento. Gratidão e aceitação do momento como ele é, e surge, sem tentares mudá-lo, encontrando conforto nisso e, até, a sua arte. Arte de aceitar tristeza e stress, por exemplo, e tornar tudo isso parte das tuas emoções e de tudo quanto faz parte, e deve fazer, da tua vida.

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Isto dito, temos aqui o Everything, Everywhere, All at Once? Não, antes pelo contrário.

O Everything, Everywhere, All at Once é apenas o título da película que recebeu o Óscar do melhor filme deste ano e nada tem a ver com o texto. E tem tudo porque, como título, e apenas título, é exatamente o contrário do que está acima descrito.

Na realidade, e para uma boa maioria de pessoas que vou vendo passarem por mim, o título do filme é precisamente o mote a perseguir na vida – lamento desiludir, mas também não é aqui que me situo. O curioso disto tudo é que quem mais fala, posta, anuncia, reclama e aparentemente mais se bate pela terminologia e cambiantes da felicidade, da estabilidade emocional, do propósito, da resiliência, do fulfilment da jornada, do desenvolvimento pessoal, da empatia, das relações, da humildade, enfim, é quem mais depressa está a pensar no frémito da compra de uns sapatos, de roupa nova, de um carro, em mudar de casa, em ter mais e mais coisas, em se apaixonar rápido, em ter uma relação depressa e em procurar precisamente que tudo aconteça hoje, aqui, agora, já. É quem mais expressão dá ao título, literal, do melhor filme deste ano para a Academia de Hollywood.

Caem por terra, assim, todas as assunções que construía no início.

Isto para dizer que há uma contradição gigante, um paradoxo cada vez mais evidente, entre o que importa ao presente, isto é, uma vida consumida de forma voraz, e as apelidadas boas práticas de gratidão, de preenchimento, de fruição do dia-a-dia. A questão é, então, como é possível ter tudo hoje, agora, já e ao mesmo tempo e, depois, postar as coisas mais interessantes sobre como viver a vida de forma despojada, amigável, compensatória, self-rewarding?

O fosso entre aquilo de que nos devemos lembrar e a forma como agimos está maior que nunca. Porquê? Porque estamos em transição entre uma sociedade e outra? Porque vivemos ambivalentes? Porque não conseguimos praticar o que apregoamos? Porque não somos capazes de manter um padrão comportamental similar ao que defendemos? Qual a razão?

E a razão não parece ser uma e apenas uma. Serão um conjunto delas e algumas têm a ver com contexto. A finitude em que acreditamos e vivemos leva-nos a pensar – quase sempre invariavelmente – que aqui, agora, já é a melhor forma de, na prática, vivermos a vida (e isso manifesta-se pelo que fazemos e pelas atitudes que tomamos). Por outro lado, a “bondade” que gostaríamos de ter leva-nos a postar e defender um conjunto de práticas e argumentos que não colam com o que realmente fazemos. Não sendo isto a síndrome do impostor é, em todo o caso, um caso de impostura. Enganas-te a ti mesmo, destróis-te a ti próprio e, como está mais que visto e compreendido, a ajuda psicológica é cada vez mais necessária e a psiquiátrica cada vez mais frequente.

Que concluir daqui? Nada de novo.

Em primeiro lugar, que o homem é o homem e não deixará de o ser. Em segundo que o engano próprio tem sérias consequências para a saúde e a saúde mental nunca foi tão séria quanto hoje. Porquê? Porque o engano é cada vez maior. Ou seja, uma boa parte da explicação, para além de outras e há várias, está precisamente na dissonância entre o que achas que te faz bem e o que fazes, aparentemente, por bem. Finalmente, é sempre bom recordar que existem frases lapidares e ditos intemporais. É o caso do pregão de São Tomás: “Faz o que ele diz, não faças o que ele faz”. Enquanto isso, torna-se inescapável o belíssimo título de um filme que presumo nada tem a ver com isto. Premiava-o pelo menos pelo título, magistral, porque o resto não posso ainda avaliar: Everything Everywhere All at Once. Porque é precisamente isto que se passa, e espelha, a forma como as pessoas vivem, na prática, as suas vidas. Não todas. Mas muitas.