Uma família em isolamento, dia 55
6h40. Vou levantar-me já para acabar o relatório que não consegui concluir até às quatro da manhã. Estava tão cansado que já trocava letras. Durante o dia, com os miúdos, é impossível. Isto está a dar cabo de mim. Outra noite a dormir menos de três horas.
7h30. Parece que ouvi um dos miúdos. Não! Não pode ser. Dorme, pá. Shhh, dorme, ainda é cedo. Ontem já passava das onze quando o raio do catraio adormeceu. Deixámo-lo ficar a ver televisão até mais tarde porque já não nos queremos chatear e, secretamente, para ver se dorme mais um pouco de manhã e conseguimos ter descanso. Qual rotina de sono, qual quê!
7h40. Acordou mesmo! Merda! E ainda não acabei isto. Prometi ao chefe que estava no e-mail dele às oito da manhã. “Então, filho, já acordado? Dorme mais um bocadinho, é cedo. Queres o pequeno-almoço? Já? E se fores ver televisão e comes umas bolachas? Eu depois arranjo outra coisa. Não acordes a tua irmã.”
7h55. Sete e-mails novos da empresa. Oito. Entrou mais um. Nove! A malta já está a trabalhar. Dois e-mails da professora do mais velho. Um e-mail do professor da mais nova. Todos enviados de madrugada. Um e-mail do professor de música a lembrar para enviarmos o vídeo da canção nova. Outro e-mail do professor de música a dizer que este é que é e para ignorarmos o outro. Anda tudo cansado.
8h46. O relatório está cheio de erros. Não tenho tempo de rever, vai assim mesmo. Já vai atrasado. Se o chefe não gostar que faça ele. Estou em casa mas trabalho o triplo do que trabalhava no escritório. Vou tomar um banho rápido para estar pronto para a reunião por Zoom às 9h00.
8h47. A minha mulher antecipou-se. Vai ela tomar banho. Pede-me para acordar a mais nova para assistir às aulas do #EstudoEmCasa. A miúda não acorda. Insisto. Não acorda. Insisto. O tempo está a passar. Está com mau feitio. Pede comida. Não se satisfaz com bolachas.
8h57. Não tenho tempo para o banho. Visto uma camisa e vou para a videoconferência em calças de pijama e pantufas. Aposto que do outro lado os meus quatro colegas estão iguais. Uma está com cara de choro. Outro não tem imagem, só voz. Diz que a câmara está com um problema, eu acho que ele ainda está na cama.
9h10. Os miúdos estão aos gritos um com o outro. A minha mulher pede-me para ir lá porque ainda está na casa de banho. Peço licença ao chefe e vou separá-los. Os meus colegas reparam que estou com calças de pijama. Ainda por cima o pijama velho. Também me esqueci de desligar o microfone. Devem-me ter ouvido a gritar com os filhos.
9h21. Acaba a reunião. O chefe diz que o relatório está óptimo. Mas fala do relatório que lhe enviei ontem. O que significa que não leu o que fiz hoje. O que significa que estive a trabalhar para o boneco e dormi três horas para nada.
9h25. Preciso de me concentrar para responder a dois e-mails importantes. E depois vou finalmente tomar banho. Vou pôr os auscultadores para não ouvir a televisão nem os miúdos a discutir.
9h26. Também não ouvi a minha mulher a discutir com eles. Agora está a discutir comigo porque hoje é a minha vez de orientar as coisas de manhã . Ela também tem reuniões marcadas e vai dar aulas. Esqueci-me.
9h30. O mais velho liga o outro computador mas precisa de mim. Nunca mais cresce para aprender a mexer nas máquinas. Não consegue aceder ao Teams para ter uma aula com a professora. Tento pelo telemóvel. Não consigo. Ele chateia-se. Eu chateio-me. Peço-lhe paciência. Solto duas asneiras. “Ó mãe, o pai disse ‘merda’! E a outra asneira grande.” A plataforma não está a funcionar. Ou então é o nosso wifi. Enervo-me. Solto outro palavrão. A irmã ouve. A mãe também. O vizinho do lado também deve ter ouvido.
9h40. O filho está a ter uma aula. A filha está na RTP Memória. Vou tomar banho.
9h41. O chefe telefona. Quer que eu assista a um webinar que era dele porque tem uma reunião que não estava marcada.
9h50. Adormeço durante o webinar.
10h10. Vou tomar banho.
10h12. Afinal não vou tomar banho porque a mais nova precisa de ajuda com os TPC e às 11h00 tem uma aula com o professor e tem de enviar os trabalhos. Aliás, eu tenho de enviar os trabalhos. Ela tem 7 anos, não sabe fazer isto.
11h00. Preciso de cinco minutos para responder a uns e-mails. Ou se calhar vou antes tomar banho. Não, os e-mails são mais importantes. Mas não consigo fazer isto em cinco minutos porque pelo telemóvel demoro mais. Os computadores estão todos a ser usados.
11h30. Ainda estou a responder a e-mails. O mais velho lembra que temos de mandar o vídeo da música nova que aprendeu na flauta. Estou farto da flauta. Estou tão farto da flauta e dos vídeos e das pautas e dos ensaios dele. Duvido que venha a ser um prodígio do instrumento, mas por enquanto vai-se divertindo. Só que isto dá uma trabalheira danada. Gravamos o vídeo. Depois de tentarmos sete vezes. Ele desespera. Eu desespero. Na penúltima vez estava quase e voltou a enganar-se no Mi. Ou seria o Ré?
11h55. A minha mulher pergunta se quero que me substitua porque uma das aulas dela foi desmarcada. Eu agradeço-lhe com o coração todo fico a pensar que a amo muito e quase me esqueço que estamos há quase dois meses aqui dentro. Os quatro entre quatro paredes. Isto só costuma acontecer aos fins-de-semana ou nas férias, mas não tem comparação possível. Há dias em que estamos mesmo fartos um do outro. Ou há horas em que estamos fartos um do outro. Depois passa.
11h57. Bem vistas as coisas, se estivéssemos separados e os miúdos em residência alternada, esta coisa do confinamento fazia-se melhor. Uma semana de desespero, seguida de uma semana de descanso e a trabalhar. Não era mal pensado. Que sorte a dessas pessoas. Devem ser esses os que escrevem nas redes sociais que estão a ver muitas séries na Netflix. Ou que dizem que conseguem ler livros. Ou então têm filhos adolescentes. Também resulta. Se é para termos uma pandemia e ficamos fechados em casa, que seja com filhos adolescentes. Ou então sou eu que estou tão cansado que já não penso coisa com coisa.
12h00. Ia tomar banho mas vi um vídeo no Youtube com uma aula de alongamentos. Vou experimentar. Para relaxar um pouco.
12h05. Os miúdos começaram a discutir outra vez enquanto a minha mulher atendeu um telefonema. Tenho de os separar. “O mano estava a olhar para mim e eu não queria. Ele estava a fazer de propósito. E tocou na minha almofada do sofá.” Conto até três e respondo baixinho que isso não é razão para fazer uma fita. Ele responde que foi ela que começou porque tirou um dos carros dele do sítio. Ela diz que é mentira. Começam a discutir outra vez. Desato aos gritos. Digo que estou farto deles. Depois arrependo-me de dizer isto. Eles não se calam. Pergunto se querem apanhar. Arrependo-me outra vez. A mãe desliga o telefone e vem a correr enquanto olha para mim com aquela cara de “Mas tenho de ser sempre eu a resolver isto?”. Os miúdos continuam. “Sai do meu lugar no sofá, não respires o meu ar.” A minha mulher grita também.
12h12. Saio de fininho quando eles se separam e vou preparar o almoço. Acho que é hoje que algum vizinho telefona para a PSP. Não chegamos ao fim da pandemia ser termos uma visita da CPCJ.
12h20. O arroz está ao lume e tenho vontade de abrir uma garrafa de vinho e começar já a beber. Isso faz-me lembrar que tenho de encomendar mais vinho. Ia tomar banho mas isto é mais importante. O vinho não pode acabar.
12h24. A minha mulher vai regressar ao computador e volto a estar eu com os miúdos. Tenho de ajudar com os trabalhos de casa, descarregar os ficheiros com sugestões de dobragens e colagens em papel da mais nova e fazer a lista de compras de que precisamos. Esse vai ser o ponto alto do meu dia: hoje vou eu sair de casa para ir ao supermercado.
12h35. Digo aos miúdos que podem ir ver televisão, se quiserem. Eles ficam desconfiados.
12h37. Abro a água para tomar banho. Mas a minha mulher chama-me, desesperada, porque precisa de ajuda com o computador. Caiu a ligação do Zoom e ela não consegue resolver. Eu também não. Tentamos noutro computador. Não resulta. E se fosse pelo telemóvel? Não conseguimos. “E se ligasses ao teu irmão, ele é informático, talvez possa ajudar.”
13h15. O primeiro tacho de arroz queimou-se. O segundo ficou melhor. Mas o meu irmão conseguiu ajudar a resolver o problema no computador, a minha mulher conseguiu retomar a aula, os miúdos conseguiram não discutir. Mas eu não consegui tomar banho.
13h22. Vejo no telemóvel que a minha empresa quer que assistamos a um webinar sobre saúde mental e teletrabalho. Eu rio-me. Acho fofinho da parte deles. No grupo de WhatsApp com os colegas começa o deboche. Uns aplaudem, outros desconfiam, uns dizem que preferiam que enviassem vinho, outros dizem que já tinham sugerido várias vezes aos Recursos Humanos.
13h30. Vou à rua num instante comprar uma alface. Levo máscara, luvas e desinfectante.
13h31. Regresso a casa para me vestir em condições porque só quando cheguei lá abaixo reparei que ainda tinha as calças de pijama.
13h50. Sentamo-nos a almoçar. Os miúdos discutem porque querem trocar de lugar. Eu e a minha mulher dizermos que podem ver a televisão que quiserem, no canal que quiserem. “Sim, à hora da refeição. Sim, é mesmo verdade, podem mesmo.”
14h35. A mãe de uma colega da filha mais nova telefona a perguntar se as miúdas podem conversar por Facetime, WhatsApp vídeo ou outra forma qualquer em que se vejam. Do outro lado as saudades apertam, mas do lado de cá, quando falamos nisso, primeiro vem um sorriso rasgado mas depois o lábio começa a tremer e os olhos a ficar vermelhos. O pranto que se segue só acaba depois de vários abraços e uma conversa calma com a mãe. “Tenho saudades dos meus amigos, do meu professor, da minha escola, de poder trocar canetas com os colegas.” E sou eu que fico com os olhos vermelhos quando ela diz que tem saudades de ficar com unhas sujas de terra por tanto brincar lá fora com as amigas.
15h02. A mãe sai de casa com as crianças durante uns minutos, para poderem arejar, esticar as pernas ao ar livre e gastar energia. Eu aproveito para tentar trabalhar.
Durante a tarde consegui concentrar-me umas quatro meias horas horas, no máximo, com o computador na cozinha, na sala, no quarto dos miúdos e até em cima da nossa cama – onde quer que encontrasse um sítio sossegado ao longo de cinco horas em que houve depois mais birras, mais lágrimas, mais discussões, mais e-mails do chefe, mais e-mails a dizer que os e-mails anteriores ficavam sem efeito, mais sugestões de webinars, mais reuniões por Zoom, mais um vídeo de uma aula de ginástica do filho e mais uma conversa séria com a minha mulher, já nem me lembro bem sobre o quê.
Abrimos o vinho às cinco da tarde. Eu voltei a pensar em regressar aos ansiolíticos. Acabei por não ir às compras. E não consegui tomar banho. Só à noite, depois de os miúdos estarem a dormir. E antes de começar a trabalhar novamente pela madrugada fora.
PS: Isto não me aconteceu a mim. Não assim, tal e qual. Mas já houve dias parecidos. Na minha casa e nas vossas. E nas dos vossos colegas, dos vossos chefes, dos vossos vizinhos…
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”
Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas
Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa
Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?
Dia 22. “E se te vestisses de professora?”
Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste
Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento
Dia 26. Não vamos ter ensino à distância
Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia
Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro
Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio
Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril
Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?