1 Após o interregno de Agosto, tenho agora o prazer de retomar estas crónicas com uma referência  a um jantar muito especial com Francis Fukuyama que ocorreu na passada sexta-feira, 2 de Setembro, no Clube de Golf do Estoril. Dois artigos notáveis — de Teresa de Sousa no Público e de José Manuel Fernandes aqui no Observador, ambos publicados ontem — deram já conta de forma magistral dos muito estimulantes debates que lá tiveram lugar. Resta-me acrescentar apenas alguns apontamentos pessoais.

2 Um primeiro apontamento pessoal consiste simplesmente em recordar a génese invulgar do jantar com Fukuyama. Eu não fazia ideia de que ele vinha a Portugal em Setembro. Mas, em meados/finais de Julho, recebi um muito amável e-mail pessoal dele anunciando-me a visita e propondo um jantar privado na sexta-feira, dia 2 de Setembro.

Foi assim que emergiu o jantar no Estoril Golf Club, promovido — por convite apenas — pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP) e presidido pela Reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil. Entre os cerca de trinta convidados presentes, esteve também José Manuel Durão Barroso, director do Centro de Estudos Europeus do IEP-UCP, bem como os já citados distintos jornalistas Teresa de Sousa e José Manuel Fernandes.

Como tive o prazer de referir na abertura do jantar, dificilmente encontraríamos melhor símbolo e expressão de amizade. E Francis Fukuyama concordou, agradecendo a presença de todos e sublinhando a fortaleza da nossa amizade: uma amizade antiga, que remonta à década de 1990, à queda do comunismo soviético e às fantásticas transições à democracia na Europa central e de Leste; em suma, como Frank sublinhou, uma amizade fundada em valores partilhados — os valores da democracia liberal.

3 Estes valores estão hoje de novo sob ataque e é por isso de novo muito importante voltar à sua defesa. Este foi o propósito crucial do mais recente livro de Fukuyama, Liberalismo e Seus Descontentes, acabado de publicar entre nós pela D. Quixote — cujo editor, Duarte Bárbara, também nos deu o prazer e privilégio da sua presença no jantar de sexta-feira.

Francis Fukuyama voltou aí — quer no livro, quer no jantar — a sublinhar que por Liberalismo não entendia uma corrente ou um programa político-partidário particular, nem em particular uma preferência pela chamada direita ou pela chamada esquerda. Tal como enfatizara no livro, Frank explicou que entende por Liberalismo um conjunto de valores que subjazem às democracias liberais — e que por isso mesmo são partilhados enfaticamente pela direita e pela esquerda democráticas.

4 Este entendimento faz lembrar o de Karl Popper sobre “a sociedade aberta e os seus inimigos”. Como Popper nunca se cansou de repetir — inclusive quando também veio a Portugal, em 1987, a convite do então Presidente Mário Soares — existem ditaduras de esquerda e ditaduras de direita. Mas a sociedade aberta subjacente à democracia liberal não é de esquerda nem de direita — é, aliás, o único regime em que esquerda e direita coexistem pacificamente e pacificamente concorrem entre si no Parlamento, alternando no Governo com base em eleições livres e leais.

Isto é possível, sublinhou Popper, porque a democracia liberal não é definida por políticas específicas ou por resultados específicos a alcançar, mas sobretudo por um mal maior a evitar — a ditadura e a violência.

“How to get rid of bad governments without bloodshed” — foi assim que Popper celebremente definiu o propósito central da democracia liberal. E esse propósito não depende prioritariamente do governo de políticas específicas, da chamada esquerda ou da chamada direita, mas assenta crucialmente no governo das leis — Rule of Law — consagrado numa Constituição liberal e democrática. É este governo das leis que limita o poder de todo e qualquer poder particular, a começar pelo do estado, e garante a liberdade ordeira sob a lei. E é neste quadro que têm lugar a concorrência e alternância pacíficas entre políticas específicas rivais (estas sim de esquerda ou de direita, na condição de aceitarem as regras gerais da Constituição liberal e democrática, incluindo as regras gerais para a sua revisão e aperfeiçoamento).

5 Eis por que motivo é tremendamente grave o clima tribalista — alimentado mutuamente por tribos sectárias da esquerda e da direita radicais — de desrespeito pelas regras gerais que tem vindo a crescer em várias democracias ocidentais. A expressão mais grave desse tribalismo anti-Constitucional, como sublinhou repetidamente Francis Fukuyama, teve lugar no assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro do ano passado. E persiste intoleravelmente no clima de suspeição sobre os resultados e procedimentos eleitorais da grande democracia norte-americana —  alimentado pelo Sr. Trump e pelas patrulhas mal-criadas que o seguem.

Este desrespeito pelas regras gerais da democracia liberal está também subjacente — Fukuyama sublinhou enfaticamente — ao desprezo pelas regras gerais internacionais que a ditadura czarista-soviética de Putin violou flagrantemente com a infâme invasão da Ucrânia. Não tenho aqui espaço para desenvolver este tema, que Fukuyama sublinhou enfaticamente. Mas vale a pena recordar que, também na complacência para com a Rússia de Putin, Frank detectou uma estranha aliança entre grupos tribais da extrema-esquerda e da extrema-direita.

6 Tenho de concluir este texto, que já vai longo. E gostaria de o fazer voltando a Karl Popper. Repetiu-me ele insistentemente ao longo de vários anos que a democracia liberal e o respeito por regras gerais não é possível sem um sentido pessoal de dever e de auto-controlo — a que Popper gostava de chamar gentlemanship. E, por gentlemanship, Popper entendia a capacidade de cada pessoa para não se levar a si mesma demasiado a sério, mas para levar muito a sério os seus deveres — especialmente quando a maioria à sua volta só fala nos seus direitos.

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