1 O século XIX foi o século do desenvolvimento de um capitalismo selvagem. Era natural crianças trabalharem em fábricas 10 e 12 horas, os trabalhadores não tinham praticamente direitos. O início do séc. XX trouxe dois novos factos que levaram a uma mudança estrutural do capitalismo. As revoluções socialistas e a competição que se iniciou entre o capitalismo, a ocidente, e os países socialistas, a leste, introduziu pela primeira vez a constatação de que havia uma alternativa ao capitalismo. Por outro lado, a primeira grande guerra, a hiperinflação o endividamento e a grande crise financeira de 1929, criaram as condições para uma transformação do capitalismo que simbolicamente se iniciou com o New Deal de Roosevelt. Nessa altura Max Weber escrevia a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em sociedades predominantemente religiosas, a ética protestante (e católica) temperava alguma avareza no desenvolvimento dos negócios. Foi, mais tarde, na Europa sobretudo após a segunda grande guerra (décadas de 50 a 70), com contributos dos partidos social democratas e do movimento sindical, que se desenvolveram os Estados sociais que, ao cobrir parcialmente muitos dos riscos sociais (desemprego, doença, pobreza na velhice) e ao alargar a propriedade privada (e.g. na habitação), reconciliaram grande parte das populações com o capitalismo. O último quartel do séc. XX, simbolicamente com a entrada em cena de Thatcher e Reagan, coincidiu com a desregulação, complexificação do sistema financeiro, a laicização da sociedade e a crescente “sacralização” do dinheiro como símbolo de mérito e status social. O modelo de países socialistas ruiu. Esta neoliberalização da economia e da sociedade, num capitalismo (democrático ou de partido único) agora como sistema universal, esteve associado a um excesso de ganância e egoísmo. Trouxe um agravamento das desigualdades, nomeadamente entre os dois grandes factores produtivos: trabalho e capital. Dado que é fácil tributar os factores produtivos imóveis (e.g. habitação) ou de mobilidade reduzida (trabalhadores) e difícil tributar os altamente móveis que facilmente vão para outras jurisdições (capital) não é de estranhar que as desigualdades tenham aumentado com o peso na tributação dos rendimentos do trabalho (direta ou indireta) a aumentar consideravelmente. Exércitos de consultores fiscais e advogados têm sugerido formas de usar paraísos fiscais, ou jurisdições com baixa tributação para com inteligentes decisões sobre onde sediar a sede fiscal das empresas, habilidosas formas de contabilidade criativa entre jurisdições, fazer reduzir a taxa efetiva de tributação dos lucros das empresas numa “corrida para o fundo” (race to the bottom) que tem levado alguns países a beneficiar de uma estratégia de competição. Sendo legal, não deixa de ser injusta e constituir um desincentivo ao cumprimento das obrigações fiscais de todos os que não têm acesso ao planeamento fiscal internacional. Na Europa, a Irlanda, a Holanda, Malta, Chipre, o Luxemburgo, o Reino Unido (nos serviços financeiros) são os países que têm beneficiado grandemente desta estratégia. Portugal tem sido prejudicado. As empresas que mais têm beneficiado são as grandes multinacionais que em vez de se sediarem nos EUA (taxa de 21%) preferem a Irlanda (12,5%) ou outras jurisdições. A União Europeia, que há anos identificou o problema, tem sido incapaz de lhe dar uma resposta dada a regra de unanimidade usada em matérias fiscais. Aquilo que tem sido largamente discutido é apenas uma harmonização da base tributária da tributação das empresas, algo que tem tido o veto expresso da Irlanda.

2 É neste contexto que a aprovação pelo grupo de países do G7 de novas regras de tributação internacional das grandes empresas multinacionais é um importante passo para que algo de estrutural mude no funcionamento do capitalismo mundial. Pretende-se estabelecer quer uma base mais justa de concorrência mundial (um comum level playing field) quer uma distribuição mais justa da tributação dos lucros entre países. A proposta, que ainda terá de seguir para o G20 (que representa 80% do PIB mundial e 60% da população) e depois para os países da OCDE tem dois pilares importantes. O primeiro, estabelece um novo regime de tributação das maiores empresas multinacionais em que, quando a margem de lucro é superior a 10%, uma proporção (20%) desse excedente será tributado, e liquidado, não na base da sede fiscal da empresa, mas do local onde as vendas são efetivadas. Um segundo pilar, estabelece uma taxa mínima de tributação (15%). Se o segundo pilar diminui significativamente a gestão territorial do domicílio fiscal das empresas, e neutraliza parcialmente o uso de paraísos fiscais, o primeiro introduz maior justiça, ainda que ténue, na repartição das jurisdições que beneficiam da receita fiscal. É difícil, em abstracto, não ser favorável a esta proposta. O próprio Nick Clegg, ex-líder liberal-democrata e agora vice-presidente do Facebook, uma das empresas que pagará mais impostos e em mais países, já veio elogiar a proposta. As dificuldades no concreto, porém, são várias umas mais sérias que outras. Vários países (e.g. França, Inglaterra) avançaram unilateralmente com impostos sobre serviços digitais precisamente pela incapacidade de se chegar a um acordo global. Os EUA já vieram esclarecer que esta nova proposta deverá levar à supressão desses impostos, algo que estes países aceitam quando, e se, a proposta for implementada. Há, porém, variados detalhes a esclarecer: quais as empresas que estarão sujeitas a estas novas regras?  qual a base tributária a ser considerada quando se fala nos 15%? Qual a fórmula de repartição da receita fiscal entre os vários países onde as empresas multinacionais têm vendas? Em que medida a proposta é aprovada politicamente dentro de cada país? (por exemplo Biden terá ainda de a aprovar no Congresso). Cada país está já a fazer algumas contas sobre o impacto desta proposta na sua economia e nas suas receitas fiscais e a tentar obter o máximo de excepções. O Reino Unido, beneficiando da presidência do G7 em 2021, já disse que quer as empresas de serviços financeiros de fora, mas não é certo que o consiga. Será que Portugal vai tentar manter de fora a Zona Franca da Madeira? A aceitação de excepções, enfraquecerá e poderá inviabilizar um acordo mais vasto que se deseja quer no G20 de Julho, quer na OCDE.

É ainda cedo para perceber se o acordo agora alcançado pelo G7 foi ou não um marco histórico numa nova fase do capitalismo mundial. Um pouco mais justo na concorrência, e um pouco menos desigual na tributação de trabalho e capital e na afetação das receitas fiscais entre países. Contudo, é certamente um motivo de esperança.

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