Eduardo VII, chegado ao trono, proclamou ​Gentlemen, you may smoke​, pondo termo a uma proibição imposta por sua mãe Vitória e recuperando um velho direito e um sempre actual prazer. Hoje, mais de um século depois, esta prática é menos uma Liberdade, exercida como direito, e mais uma liberalidade, exercida — ainda — como concessão.

John Locke, pensador decisivo para a edificação da Democracia Liberal e do Ocidente como os conhecemos, reconheceu ao Homem três direitos naturais: a ​Liberdade​, a ​Vida e a Propriedade​. Talvez não seja muito exagerado dizer, porém, que estamos hoje a viver numa era pós-Lockeana.

A ​Propriedade erode-se, pela mão da poderosa autoridade fiscal, nos montantes que cobra, na omnipresença que impõe e na coerção que usa. No caso do tabaco, para não nos afastarmos do tema que aqui nos traz, entre imposto especial e IVA, cerca de 80% do preço é imposto. Nisto há a tributação ​normal sobre o consumo e a ​neo litaniae sanctorum ​da saúde pública, dos efeitos laterais não cobertos para a sociedade, e do ​mal que o tabaco faz, desaguando numa reeducação social imposta à lei do custo. E isto leva-nos à questão da ​Liberdade​.

A ​Liberdade,​ como direito natural ​Lockeano​, deve ser protegida, com os demais direitos, por um contrato de cedência — de consentimento — do cidadão a favor do Estado, para que este a salvaguarde. Para que a salvaguarde, repito, não para que a molde à sua moral ideológica.

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Pergunto-me se sou só eu que me inquieto — qual selvagem de uma distopia — ao ver nos maços de tabaco as fotos explícitas de tumores, e mensagens como ‘Fumar pode matar o seu filho antes de nascer’, perpetrando um indisfarçado atentado à liberdade individual, à dignidade humana e à razão? Qual é o próximo passo? Fotos de cirroses nos rótulos do vinho? Calotas polares a derreter nas embalagens de carne de vaca? Artérias entupidas nas batatas fritas? De que mais se lembrará o Estado Grande Educador? Para já, por cá, vamos na proibição dos rissóis e dos croquetes nos bares do Serviços Nacional de Saúde (SNS); e já agora dos ​Jesuítas​, seguramente para gáudio do Marquês de Pombal.

Quanto ao direito à ​Vida,​ mergulhados no dominante relativismo utilitarista das ‘barrigas que são minhas’ e das ‘vidas que não são vida’, vai-se erodindo também; menos quando convém. A mulher, caso queira pôr fim à vida de um filho por nascer, pode ir ao SNS sem que a opinião do pai importe; porque o corpo é só dela. Porém, na sua estóica e moralizadora escalada para fazer de mim um cidadão saudável, decente e moralmente íntegro o Estado “adverte-me” que a minha condição latente de infanticída deve ser contrariada; porque aparentemente o corpo não é só meu.

Não sou um negacionista dos malefícios do tabaco, nem um obscurantista contrário às campanhas informativas feitas com dados factuais, mas dispenso os que me vêm exortar, num proselitismo pagão, para os graves problemas de saúde que as minhas práticas adensam, considerando-se mais informados que eu, pobre ignóbil, que consumo estas “drogas” não por opção mas seguramente por ignorância. E dispenso toda essa multidão de dedo em riste convicta que os meus maus hábitos têm de ser corrigidos. E dispenso os “moralistas económicos” que me vêm dizer que o SNS, pago com o dinheiro de ​todos​, não tem de tratar os ​alguns​ que voluntariamente prejudicam a sua saúde.

Na verdade, seria bom viver numa sociedade de escolhas livres, de cidadãos maduros e responsáveis que dispensam um ​nanny state ​a tomar conta de si, de cidadãos livres de fazer consigo o que bem entendem, mesmo quando optam pelo que os prejudica.

Mas no mundo em que vivemos a palavra ​liberdade começa mesmo a soar a novilíngua. Os totalitarismos vêm sempre pejados de boas intenções. São as boas intenções e todas as medidas tomadas em favor dessas boas intenções que, passo a passo, acabam a esmagar as liberdades e os indivíduos. Porque há sempre um ​bem maior ou uma ​volonté générale​. Como dizia Hannah Arendt, “o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos.”

Em síntese, fumar é mais saudável que qualquer espécie de totalitarismo; mesmo os higiénicos e sanitários. Fumar, hoje — mais do que na época de Eduardo VII — é ainda um statement​, já não social ou de emancipação, mas um ​statement político, de defesa da Liberdade,​ sobre todos os que buscam unificar e regular, como dizia Rosseau, constamment le bonheur de chacun.​ É por isso que é razoável proclamar, para que a Liberdade não venha a ser uma vaga memória que alguma comissão cuide de erradicar por decreto, ​Gentlemen and Ladies, you should smoke!​