Há contratos e contratos, há o PS de mão dada com a esquerda e há o PS de mão dada com a direita. Há Eurogrupo e Eurogrupo, há Mário e há Centeno. A ausência de coerência entre tempos, e até ao mesmo tempo, é a regra dos tempos modernos da política. É o pragmatismo levado até às últimas consequências, sem consequência. Estamos a gostar porque, por enquanto, não há problemas. Depois logo se vê. Hoje distribui-se com a esquerda, amanhã tira-se com a direita? Talvez. Em tempos tão incertos, tudo pode acontecer com aliás temos visto nos últimos dois anos.

Durante esta semana os ministros das Finanças dos 19 países do euro escolheram Mário Centeno para seu presidente. Há exactamente dois anos, a 7 de Dezembro de 2015, Mário Centeno, ministro das Finanças de Portugal, participava na sua primeira reunião do Eurogrupo e não deixou uma boa impressão. Lá dentro, como cá fora, criticou política económica seguida até aí pelos seus antecessores Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque. E, dessa forma, criticou igualmente os seus pares que, mais do que validarem, contribuíram para o desenho das medidas adoptadas na era da troika. Lá dentro, como cá fora, disse que Portugal ia “virar a página da austeridade” e não cumpriu uma regra implícita do Eurogrupo: evitar criticas aos antecessores. Não deixou uma boa impressão mas, como vemos agora, teve uma segunda oportunidade.

Aquele era o tempo em que as palavras eram “reversão”, “fim da austeridade”, reposição rápida dos salários e das pensões, quebra de contratos das concessões dos transportes à privatização da TAP e até promessas de estudar a reestruturação da dívida – como se fez sem efeitos práticos. Quem ouvia o que dizia Centeno e o primeiro-ministro assustava-se. Depois de termos garantido a reentrada nos mercados – sinónimo de que não tínhamos de andar a pedir emprestado ao FMI e às instituições europeias, submetendo-nos às suas políticas –, víamos à nossa frente o risco de voltar a cair nas mãos da troika.

Só muito tarde, já ia longo o ano de 2016, é que se percebe que uma coisa eram as palavras do Governo e outra, completamente diferentes, seriam os actos. Mário Centeno usou e abusou do poder do ministro das Finanças de não libertar o dinheiro que tinha sido orçamentado para os serviços, a sua variável de ajustamento do défice, a sua arma que ficou secreta até se descobrir que as cativações se tinham transformado em cortes. Apesar dessa arma, o Governo ainda se assustou com o andamento das contas públicas, lançando mão ao tradicional perdão fiscal. Mas a recuperação económica acabou por ajudar e eis que em 2017 Portugal sai do seu terceiro Procedimento por Défices Excessivos em menos de uma década de União Monetária.

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A sorte protege os audazes, ensina-nos a sabedoria popular. E os audazes foram protegidos pela sorte, fazendo crer, a quem precisa de crer, que havia uma alternativa menos dolorosa ao ajustamento a que Portugal esteve sujeito entre 2011 e 2014. Como ninguém olha para o que seria uma realidade diferente desta, resta o exercício de especulação que nos conduz a admitir que hoje poderíamos estar melhor do que estamos. Podíamos ter saído mais cedo do “lixo” das agências de rating, ter um excedente orçamental, aproveitar a retoma para reestruturar o Estado e assim conseguir garantir aos funcionários públicos que não enfrentarão de novo cortes de salários e aos pensionistas de hoje que não enfrentarão novos cortes e aos de amanha que terão pensões. Mas não.

António Costa precisou de dar um passo atrás para o país dar dois passos em frente? O futuro o dirá já que por enquanto estamos a chegar ao ponto do rendimento de 2010, com uma dívida mais elevada e um percurso político que nos coloca boquiabertos.

Neste momento, o mesmo Mário Centeno que causou uma primeira má impressão aos seus pares do euro vai agora liderá-los com a bênção da Alemanha tão demonizada pelo próprio PS. Mário Centeno, e a esquerda em que se inclui o PS, que acusaram Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque de se submeterem ao ex-ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble bate agora palmas ao ouvir o mesmo ministro dizer que Centeno é o Ronaldo dos ministros das Finanças. Sem se dar conta que se está a elogiar o génio de aplicar a austeridade e ser aplaudido por ela.

Ao mesmo tempo que Centeno conquista os corações dos ministros das Finanças do euro, por ter conseguido ter uma política invisível de austeridade, por cá entramos igualmente numa nova fase, aquela em que os contratos passam a ser para cumprir. O Bloco de Esquerda propôs uma taxa sobre as energias renováveis altamente subsidiadas e repentinamente descobriu-se que não podia ser, porque os riscos de perder processos em tribunal eram enormes. Pergunta-se: se António Costa conseguiu não cumprir os contratos de concessão dos transportes públicos, se António Costa conseguiu reverter a privatização da TAP, porque não usa a sua capacidade negocial para minorar um problema das rendas exploradas pela energia que nem a troika conseguiu?

Como Ana Suspiro explica aqui, foi o que se está a passar em Portugal com a Contribuição Extraordinária sobre a Energia (CESE) e em Espanha – onde o Governo teve mais coragem do que o português de Pedro Passos Coelho em 2013, governo onde até se demitiu um secretário de Estado por causa da energia – que fez com que o Governo desse o dito por não dito ao Bloco de Esquerda. Na CESE, o Estado enfrenta processos da REN, da EDP e da Galp (esta última nem pagou a contribuição), revelando também até que ponto as empresas são insensíveis às dificuldades financeiras que os países onde estão enfrentam, ao mesmo tempo que desenham políticas de marketing de responsabilidade social. Em Espanha há processos mas os que foram julgados pelos tribunais nacionais ditaram até agora a derrota das empresas. A que até agora ganhou, a companhia luxemburguesa Eiser Infrastructure, fez uso de um tribunal arbitral, o International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID), entidade, pasme-se, integrada no Banco Mundial.

Sobre o assunto da energia, António Costa disse que Portugal “é um Estado de Direito” onde “os contratos são para serem cumpridos”. É difícil discordar de uma afirmação destas: um país que precisa de investimento estrangeiro tem de garantir que é um Estado de leis. Mas a lei deveria ser cega. E os contratos são para cumprir para todos e não apenas para o sector da energia que parece ter um poder que mais ninguém tem no País. No caso deste Governo, esse poder parece aliás ter sido conquistado recentemente. Como recorda o director do Eco António Costa, o primeiro-ministro dizia há seis meses que as empresas do sector energético usavam “manhas” para contornar a regulação e os contratos, acusando a EDP de ter passado de “uma posição dócil para uma posição hostil ao Governo”. Na altura estava em debate o tema das “rendas” do sector e a questão foi colocada pela deputada dos Verdes Heloísa Apolónia. Criou-se legitimamente a expectativa de que o Governo iria actuar para acabar com o que nem a troika conseguiu. Afinal estávamos enganados e hoje do que se fala é de quem vai substituir Eduardo Catroga como chairman da EDP, se Luís Amado, se Lacerda Machado. A administração da EDP tem hoje, como no passado, dos lugares mais apetecíveis e ainda acessíveis à classe política do país.

A história destes dois anos de governação é sem dúvida uma lição de pragmatismo político, gestão do curto prazo e de batalha sem olhar a meios para manter o poder e sem qualquer preocupação de coerência intertemporal. Em teoria pareceria impossível, na prática está a funcionar. Os contratos passam de poderem ser revertidos a irreversíveis, as empresas passam de hostis a protegidas, as páginas da austeridade viram-se mas não são vistas como viradas em Bruxelas, Mário Centeno consegue ser ao mesmo tempo o ministro que acaba com o rigor orçamental em Portugal e é o Ronaldo do rigor aos olhos de Berlim. Vivemos tempos extraordinários.