Os episódios políticos em torno da formação do mais recente governo italiano geraram legítimas preocupações. É sem dúvida motivo de apreensão a excêntrica aliança governamental entre dois partidos radicais, um à direita (Liga Norte) e outro à esquerda (Movimento Cinco Estrelas).

Mas esta preocupação ainda foi mais acentuada quando o Presidente da República italiana anunciou a intenção de recusar a coligação e nomear (mais) um governo tecnocrático de gestão. Esta iniciativa (que acabou por ser superada) teria levado à vitimização dos dois partidos radicais impedidos de governar. Como as sondagens já apontavam, teria levado ao reforço das suas votações e à ainda maior radicalização da vida política italiana.

Por outras palavras, apesar das efectivas ameaças contidas na nova coligação radical, o normal funcionamento do sistema parlamentar constitui o melhor remédio para tentar domesticar essas ameaças.

Alexis de Tocqueville forneceu um valioso contributo nesta matéria (além de muitas outras). Na sua reflexão sobre os excessos radicais da revolução francesa de 1789, Tocqueville detectou a “embriaguês com ideias gerais”, que ele também justamente identificou como uma das principais fontes de radicalismo e um dos principais obstáculos ao espírito de reforma gradual:

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“Quando se estuda a história da nossa Revolução, vê-se que ela foi conduzida precisamente no mesmo espírito que a fez produzir tantos livros abstratos sobre o governo. Vemos a mesma atração pelas teorias gerais, os sistemas completos de legislação e a simetria exata nas leis; o mesmo desprezo pelos factos reais; a mesma confiança na teoria; a mesma vontade de refazer de uma só vez toda a Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano único, em vez de procurar emendá-la nas suas várias partes. Um espetáculo assustador! De facto, o que é uma qualidade num escritor é, por vezes, vício num estadista; as mesmas coisas que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a tremendas revoluções.” (O Antigo Regime e a Revolução, 1856).

Tocqueville observou depois com argúcia que a era democrática da igualdade estimula o gosto pelas ideias gerais. E observou também que a democracia americana apreciava mais as ideias gerais do que a democracia aristocrática inglesa – sendo que esta última não as apreciava de todo. No entanto, observou ainda que “os americanos nunca se apaixonaram tanto quanto os franceses pelas ideias gerais em matéria de política”.

É muito curiosa a principal razão que Tocqueville atribuiu essa diferente intensidade das ideias gerais entre os americanos, por um lado, e os franceses, por outro. Chamou-lhe a “arte da liberdade política”:

“Os americanos são um povo democrático que sempre dirigiu por si próprio os assuntos públicos e nós somos um povo democrático que durante muito tempo só conseguiu sonhar na melhor maneira de o fazer. O nosso estado social já nos levava a conceber ideias muito gerais em matéria de governação, mas a nossa Constituição política continuava a impedir-nos de rectificar essas ideias por meio da experiência, descobrindo, pouco a pouco, a sua insuficiência; no caso dos americanos, pelo contrário, ambas as coisas se equilibram constantemente e se corrigem naturalmente.” (Da Democracia na América, Vol. II, 1840).

Esta observação levou Tocqueville a concluir que a melhor terapêutica para o radicalismo associado à paixão pelas ideias gerais é a experiência política da alternância democrática:

“Por conseguinte, quando existe um assunto sobre o qual é particularmente perigoso os povos democráticos aplicarem cega e desmedidamente as ideias gerais, o melhor corretivo consiste em procurar que se ocupem dele todos os dias e de forma prática; assim, serão forçados a passar aos pormenores, e os pormenores farão com que tomem consciência das fragilidades da teoria.” (Da Democracia na América, Vol. II, 1840).