O Financial Times elogiou, em editorial, a sagacidade do primeiro-ministro. Refere o jornal britânico que a governação de “Mr. Costa” é uma luz de esperança no contexto europeu – de facto, a bitola está muito baixa quando a comparação é feita com os protagonistas do Brexit, as embrulhadas das nomeações da Comissão Europeia, os desgovernos italiano (Salvini) e espanhol (Sanchez), os tiranetes da Hungria e da Roménia, as ilusões de grandeur de Macron ou a progressiva saída de cena de Merkel. Ultrapasse-se o facto de haver algo de provinciano na euforia com que esse editorial foi recebido em Portugal – vindo, aliás, de um jornal que, no nosso país, pouquíssima gente lê. Esqueça-se igualmente o facto de, há pouco mais de 10 anos, o mesmo Financial Times elogiar generosamente José Sócrates e o seu governo, quando o abismo já estava ao virar da esquina – com este historial, não é certo se os elogios de hoje constituem currículo ou cadastro. Ponha-se, portanto, isso tudo de lado e olhe-se à pergunta que percorre o editorial em causa: afinal, que luz de esperança é essa que o Financial Times viu no governo português? Resposta curta: a ortodoxia de Bruxelas, que a geringonça rejeita nos discursos mas aplica no Orçamento de Estado.

A resposta longa vem sob a forma de um misto de “escolhas políticas acertadas” e “boa dose de sorte”. O que foi sorte? O boom do turismo, os juros baixos impostos pelo BCE e a recuperação económica mundial. E quais foram as “políticas acertadas”? Bom, aqui não vale a pena atirar interpretações, porque o próprio Mário Centeno serve de fonte. O ministro das Finanças explicou ao jornal britânico, em Abril passado, o que correu bem nestes anos de geringonça: mudou-se pouco, porque, defendeu Centeno, “era preciso uma mudança, mas não uma mudança grande” face ao governo PSD-CDS (2015). Traduzindo: a carga fiscal manteve-se elevada, as metas de redução do défice continuaram a ser ambiciosas, a austeridade permaneceu uma realidade do dia-a-dia. No geral, o rumo manteve-se, mesmo que a forma de o percorrer se tenha por vezes alterado. Com o enjoo nacional da lengalenga do “virar a página da austeridade”, valha-nos a clareza com que os nossos governantes se explicam lá fora.

Portanto, o que está em causa no elogio do Financial Times é António Costa ter seguido o rumo da ortodoxia financeira europeia, governando para as metas do défice, cumprindo compromissos internacionais e apostando no recuperar da credibilidade externa do Estado português – pagando sempre o preço nacional, mesmo quando esse é elevado (caso do estrangulamento dos serviços públicos). Não representa um acidente que o ministro das Finanças esteja hoje à frente do Eurogrupo, o cérebro institucional dessa ortodoxia pós-crise internacional. A “luz de esperança” que fez manchetes é apenas isto: um governo de esquerda, aliado a partidos radicais, que obteve resultados sem se desviar da ortodoxia europeia – ao contrário do que tem sido a pressão política noutros países, com destaque para Itália. Nesse aspecto, há que o reconhecer, os elogios do Financial Times são justos.

A questão que se coloca é se a esquerda parlamentar portuguesa se orgulha desse feito. No PS, o ponto não é forçosamente pacífico. Por exemplo, Pedro Nuno Santos, representante da ala esquerda dos socialistas e putativo candidato a líder do PS, sempre esteve mais próximo dos críticos da política europeia. E, noutro exemplo, em 2014, aquando da nomeação de Carlos Moedas para Comissário Europeu, foram duríssimas as críticas de António Costa para com aquele que, aos seus olhos, representava a ortodoxia de Bruxelas – Moedas era, então, o “ortodoxo dos ortodoxos”. Pelos vistos, esse lugar foi agora ocupado por Mário Centeno, embora sob aplausos entusiásticos do primeiro-ministro. Eis a viragem política que o PS tem discretamente executado nestes anos.

Essa viragem do PS foi feita à boleia do apoio parlamentar de PCP e BE, mas obviamente sem esses partidos do seu lado – estes são críticos veteranos da política europeia e isso não se alterou estruturalmente desde 2015. Ora, neste desfasamento encontra-se a chave para os dilemas sobre a composição do próximo governo. Em 2015, toda a esquerda parlamentar estava unida nos pressupostos de rejeição da ortodoxia de Bruxelas e da correspondente austeridade, representada por PSD-CDS. Em 2019, essa plataforma de entendimento comum foi estilhaçada pelo PS, que de certo modo ocupou o espaço PSD-CDS e o tomou para si. Portanto, a convivência entre os partidos à esquerda é cada vez mais crispada – ao ponto de, ontem, Costa qualificar a hipótese de coligações formais de “absolutamente impossível”. E, se os resultados eleitorais forem no sentido da renovação de parcerias parlamentares do PS com a esquerda, PCP e BE têm perante si uma decisão muito mais difícil do que em 2015: “governar como Passos Coelho” (como Catarina Martins tem acusado) é o preço que, aos seus olhos e em várias pastas, estes partidos terão de assumir para obter a sua fatia de poder.

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