Chegou oficialmente o outono, e o inverno está a caminho. O início desta altura mais tempestuosa do ano coincidiu com um discurso de Vladimir Putin a anunciar a mobilização parcial e a exibir novamente – pelo menos quatro vezes – o seu arsenal nuclear. Não irei cometer o erro dos defensores de Putin, que em Fevereiro nos garantiam que uma invasão era irracional e, portanto, impossível. Putin tem assumido opções pouco racionais do ponto de vista dos verdadeiros interesses da Rússia. Depois de 22 anos no poder, parece confundir os seus interesses com os interesses do país. Por isso, nunca me passaria pela cabeça garantir que seja impossível uma escalada perigosa, inclusive com o recurso a armas nucleares, se o senhor do Kremlin sentir a sua sobrevivência ameaçada. Que conclusões podemos tirar de tudo isto?

Putin não podia esperar

Putin não podia esperar pelo inverno, apesar de estar a chegar. Não podia esperar pelas maiores dificuldades em levar a cabo grandes operações ofensivas que historicamente surgem a partir das chuvas de outono nesta zona do mundo. O clima está a mudar e os ucranianos estão a avançar muito depressa. As tropas de Kiev recuperaram em poucos dias milhares de quilómetros quadrados que as tropas russas tinham demorado meses a ocupar. Este outono pode ser menos chuvoso e o inverno menos frio. A chantagem nuclear e a mobilização parcial russas dizem-nos muito do grau de desconfiança de Putin quanto à eficácia e vontade de combater das suas tropas. Prova disso é o facto de o parlamento russo estar a debater uma lei para agravar as penas por deserção e recusa de combater.

Putin também não podia esperar por controlar todo o território do Donbas e da dita Nova Rússia para organizar pseudo-referendos. Este será, aparentemente, o primeiro referendo da história a ser anunciado e organizado em menos de uma semana. Ninguém de boa fé lhe dará qualquer valor como expressão da vontade popular. Porquê tentar fazê-lo? Putin precisava urgentemente de dar aos colaboracionistas e separatistas um sinal de que não os irá abandonar, perante notícias de que alguns começavam a debandar para a Rússia. Fica ainda a suspeita – apesar de vagos desmentidos – de que tal tornará possível obrigar legalmente os jovens russos que estão a fazer o serviço militar obrigatório a combater na Ucrânia.

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Este passo também significa que a Rússia não poderá negociar territórios que se dispõe a anexar. É essa a paz que queremos? Queremos reconhecer à Rússia um direito de conquista mal embrulhado numa fantasia pseudodemocrática? Putin aparentemente também não podia esperar pela combinação da chegada do inverno e da sua guerra energética para tentar dividir o Ocidente e minar a sua vontade de ajudar a Ucrânia. Iremos fazer-lhe a vontade?

O que deve o Ocidente fazer?

O Ocidente está em desvantagem perante a Rússia desde o início desta invasão. Isso não se deve a qualquer génio estratégico de Putin ou à grande capacidade das Forças Armadas russas. Deve-se ao facto de o Kremlin não ter problemas em violar o pilar da ordem legal internacional, que, desde 1945, determina o fim das guerras de conquista e anexação. Putin até parece disposto a ameaçar com uma hecatombe nuclear população que ele afirma ser russa! Já os países ocidentais deixaram claro, desde o início, que para evitar uma escalada perigosa iriam limitar o seu apoio à Ucrânia, nomeadamente, não iriam enviar tropas ou fornecer certo tipo de armamento.

Ao mesmo tempo, o Ocidente tinha de fazer pagar um preço elevado à Rússia pela sua invasão e projeto de anexação. O contrário seria abrir o caminho ao regresso do direito de conquista como algo normal, resultando num mundo mais violento e mais perigoso, em particular, para países da dimensão de Portugal. Mas, na medida em que esta estratégia de guerra económica contra o regime russo e de apoio militar indireto à Ucrânia fosse bem-sucedido, como está a ser, abalando a aura de homem forte de Putin, este poderia, para evitar uma derrota humilhante, apostar numa escalada perigosa.

O que fazer? Devemos deixar a Ucrânia correr o risco de uma escalada que pode chegar ao nível nuclear? Cabe fundamentalmente aos ucranianos decidir até onde querem ir na guerra e nas negociações de paz. São eles que todos os dias correm risco de vida para resistir à invasão russa. São eles que correrão o maior risco perante uma escalada. É fundamental que a grande coligação que apoia a Ucrânia deixe claro que não será ela a promover uma escalada, mas também não se deixará intimidar e não abandonará os ucranianos. Deve também sinalizar que irá rever os termos e o tipo de apoio à Ucrânia em função do nível de ameaça russa.

Quando uma potência nuclear invade um vizinho e reclama o direito de o conquistar não existem boas opções. Não são necessários autoproclamados pacifistas para nos dizerem que os riscos são elevados e que a paz é desejável. Não é aceitável é que procurem esconder que esta é a guerra de Putin. Não é aceitável defenderem uma paz a qualquer preço, que seria a receita para um mundo menos livre, menos seguro, menos pacífico.

É evidente que o Ocidente cometeu erros no seu passado, mas nenhum deles pode legitimar a invasão russa no presente. O mais relevante desses erros para esta crise terá sido a enorme pressão dos EUA sobre a Ucrânia para abdicar do seu arsenal nuclear, como resultado do desejo louvável de combater a proliferação, bem como da vontade de acomodar as preocupações da Rússia. Em 1996, a Ucrânia entregou à Rússia as últimas de milhares das suas ogivas nucleares em troca de garantias da sua segurança e integridade territorial. Esse arsenal nuclear tem feito muito falta à Ucrânia para dissuadir a agressão russa. Perante tudo isto, o mínimo que o Ocidente pode fazer é continuar a apoiar a Ucrânia.