Comparar um ditador continental nascido no século XVIII a um primeiro-ministro eleito este mês é um exercício que corre riscos de imprecisão, anacronismo e excesso de simplicidade. Estabelecer um paralelo entre as vidas de Napoleão Bonaparte e Boris Johnson é, no entanto, surpreendentemente fácil. É certo que Boris lidera o partido conservador mais antigo e mais bem sucedido da Europa — o mesmo partido que foi liderado pelos homens que juraram destruir o bonapartismo — e que o ocasional fascínio por Napoleão proliferava, fundamentalmente, no partido whig. O histórico Charles James Fox foi a Paris para conhecê-lo pessoalmente e meia-dúzia de deputados liberais chegaram até a visitá-lo no seu primeiro exílio, em Elba — uma curiosidade imperdoável para qualquer tory.

A verdade é que, fazendo justiça às ironias que só a História produz, Napoleão Bonaparte deve a sua vida — ou o facto de ter morrido de velhice — à sua némesis: o Reino Unido. Nem a Rússia, sua ex-aliada, nem a Áustria, de cujo imperador era genro, teriam hesitado em executá-lo após Waterloo.

Winston Churchill, que dispensa apresentações enquanto ídolo conservador, considerava Napoleão “o maior homem de ação nascido na Europa desde Júlio César”, o que prova que, apesar da visão intervencionista, estatista e autocrata do bonapartismo, há algum espaço para admiração. Nos territórios que Napoleão “libertou” — ou que o seu exército conquistou — os costumes feudais e senhoriais foram abolidos, a liberdade religiosa e de comércio foi proclamada e parlamentos (de dúbia autoridade, naturalmente) foram instituídos. A sua noção igualitária da educação pública — que levou à construção de centenas de liceus em França — é precursora do Estado Social moderno. O seu projeto de integração continental, possível de ler no memorial de Santa Helena, propõe uma Europa de poder central e moeda única, sendo de uma atualidade notável.

No que toca ao europeísmo, claro, não se podem apontar quaisquer parecenças com Boris Johnson. Mas as suas personalidades — e as suas virtudes — tocam-se de forma irresistível.

Coincidentemente, ambos nasceram fora dos territórios que viriam a governar — Napoleão na Córsega; Boris na América — e ambos tiveram uma infância afastada das capitais onde assumiriam o seu protagonismo. Boris deambulou atrás da carreira internacional do pai; Napoleão passou mais de metade do serviço militar em licença para resolver assuntos familiares. Ambos tiveram uma educação próxima dos clássicos e leram certamente muitos dos mesmos livros. Boris graduou-se em Filosofia Clássica; Napoleão era viciado em História da Antiguidade. Ambos escreveram obras de ficção quase auto-biográfica cujo sucesso foi, felizmente para as suas carreiras políticas, escasso. Como homens, possuem a fama dos adúlteros e demais aventurismos, não se conhecendo, nem de um nem do outro, o número exato de filhos que deixaram ao mundo. Fisicamente, depois dos quarenta, ambos arredondaram de figura e recusaram qualquer disciplina capilar. Politicamente, rodearam-se de colaboradores das mais variadas origens: Napoleão manteve oficiais de sangue nobre nas suas fileiras, mas não hesitou em promover a marechal um mercenário e vendedor de relógios (Pierre Augereau) que estivera, curiosamente, um par de meses preso em Lisboa. Boris nomeou Sajid Javid, filho de imigrantes paquistaneses, para ministro das Finanças, tendo como líder de bancada Jacob Rees-Mogg, um ultra-conservador de famílias ricas.

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Na prática, a sua flexibilidade é aquilo que mais os une. Boris foi um presidente da Câmara de Londres liberal, sorridente e centrista, tornando-se mais tarde um primeiro-ministro conservador e próximo das facções tradicionalistas do seu partido (como o infame European Research Group), sendo impossível prever com exatidão o que fará da sua recém-conquistada maioria. O percurso ideológico de Napoleão, por sua vez, é igualmente camaleónico. Foi próximo dos Robiesperre, escapando a partilhar a guilhotina com os radicais por se encontrar, afortunadamente, no casamento do irmão mais velho. Semanas depois, seria encarregado das cargas de artilharia contra revoltosos em plena Paris — os mesmos que haviam estado a seu lado enquanto revolucionário.

A relação de Napoleão com a Revolução é, aliás, tão hipócrita e paradoxal quanto a relação de Boris com o Brexit: ambos foram peças importantes na engrenagem que proporcionou a tormenta e ambos se apresentaram — e consolidaram — como soluções dessas tormentas. Napoleão, ao ser coroado Imperador da República, declararia “o fim da Revolução” em que havia participado. Boris, este mês, foi eleito primeiro-ministro do Reino Unido prometendo “acabar com o Brexit” que criara.

No que ao humor diz respeito, a semelhança é incontornável e a que me convenceu a apostar na junção. Durante a campanha eleitoral, abordado numa visita a um círculo trabalhista (“Por favor, saia daqui”), Boris Johnson riu e disse de volta: “Estou prestes a fazê-lo!”. À saída do teatro, confrontado por um louco que gritava (“Estou apaixonado pela Imperatriz!”), Napoleão soltou uma gargalhada e respondeu: “Então, meu caro, escolheste um extraordinário confidente”. E escolhera.