Foi há já vários anos que, na entrada de uma casa, vi um azulejo, de gosto duvidoso, com a seguinte inscrição: “Bem-vindo seja quem vem por bem!”

Pois bem, no domingo 2 de Julho, um jornal nacional referiu que “na noite de sexta-feira, a quarta consecutiva em que se registaram cenas de violência nas cidades francesas, foram detidas mais de 1300 pessoas, de acordo com os dados do Ministério do Interior. A idade média dos detidos é de 17 anos, a mesma que tinha Nahel”, “um jovem de 17 anos que foi morto pela polícia” durante uma operação Stop, “em Nanterre, nos arredores de Paris”. Desde então, têm-se sucedido os incidentes, de uma extrema gravidade, em muitas localidades francesas, de que resultou um elevado número de feridos, quer entre os manifestantes, quer entre os elementos das forças de segurança. Segundo a mesma fonte, “a morte de Nahel relançou o debate sobre o racismo sistémico nas forças de segurança francesas” (Público, 2-7-23).

São do conhecimento público os desacatos ocorridos e está ainda por apurar a responsabilidade do polícia que causou a morte de Nahel, bem como o comportamento deste jovem, que alguns consideram um mártir, enquanto outros dizem ter provocado, com a sua conduta, o disparo que lhe causou a morte. A verdade é que não só Paris está a arder como, de certo modo, toda a França. Há muito a esclarecer por quem de direito, pois importa que os culpados, tanto pela morte do jovem Nahel, como pelo vandalismo que, desde então, varre esse país, sejam responsabilizados.

Não é a primeira vez que a França sofre uma tão violenta e grave onda de pilhagens, incêndios e destruição. Este tipo de acontecimentos é relativamente frequente no Estado que escolheu, para seu símbolo nacional, a tomada da Bastilha, a prisão cuja demolição é o ex-libris da revolução francesa. A mãe de todas as revoluções modernas foi responsável pelo terror então vivido, nomeadamente na Vendeia, onde o ódio anticlerical, republicano e jacobino, responsável pelo que o historiador francês Reynald Secher considerou ser o primeiro genocídio moderno, causou mais de sete mil vítimas.

Se a revolução francesa foi feita em nome dos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade, por sinal originariamente evangélicos, os actuais protestos pretendem ser uma legítima defesa de um ataque racista. Que tenha sido essa a razão do suposto crime está ainda por investigar, mas não é preciso esperar pelas conclusões do inquérito judicial para condenar, sem ambiguidades, qualquer discriminação injusta por razão étnica, religiosa ou política.

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Este princípio, como os que inspiram a sociedade livre e democrática, tem o seu fundamento no Evangelho. Há dois mil anos, os judeus já viviam numa terra que era também habitada por outros povos, com os quais as relações nem sempre eram cordiais. Exemplo desta animosidade era a tensão vivida, ao tempo de Jesus de Nazaré, com os samaritanos, que os judeus consideravam um povo inferior, por motivos étnicos e religiosos. Também os samaritanos não morriam de amores pelos hebreus e, por isso, negaram hospedagem a Cristo e a alguns dos seus discípulos, quando iam a caminho de Jerusalém, por causa do destino da sua viagem e, sobretudo, da sua condição judaica. Ou seja, foram vítimas de uma discriminação racista! Foi então tanta a indignação de Tiago e João, os filhos de Zebedeu que Jesus cognominou “filhos do trovão” (Mc 3, 17), que ‘trovejaram’, dizendo: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu que os consuma?” (Lc 9, 54).

Jesus não permitiu essa vingança, porque nada há mais contrário à moral cristã do que a vingança, ou retaliação, segundo a lei do talião, que estabelecia o princípio da reciprocidade entre o dano sofrido e a sua compensação: olho por olho, dente por dente. Reagir ao mal com o mal é ser seu cúmplice, em vez de contrário. Por isso, ao mal responde-se com o bem que, muitas vezes, exige accionar o que, em justiça, é devido, mas, sempre, obriga à compreensão, ao diálogo e ao perdão. Não basta não ser racista, porque a virtude não é a mera abstenção do vício contrário, mas promover a paz e a concórdia entre todas as nações, raças e religiões. A Igreja, ao contrário da Antiga Aliança, não está circunscrita a um único povo, porque é, por essência, católica, ou seja, universal.

Cristo combateu o racismo com a palavra e, sobretudo, com as suas acções, nomeadamente em relação aos samaritanos, que a maioria dos judeus desprezava. É chamativo, por exemplo, que, quando Jesus se encontrou com uma mulher samaritana, junto ao poço de Jacob, não só lhe dirigiu a palavra, atitude que até a própria estranhou – “Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou samaritana?! Com efeito, os judeus não comunicam com os samaritanos” (Jo 4, 9) – como também, sem a desculpar, não censurou a sua atribulada vida matrimonial: “tiveste cinco maridos e o que agora tens não é o teu marido” (Jo 4, 18). A ela se revelou, muito excepcionalmente, como sendo o Messias (Jo 4, 25-26), o Salvador do mundo! (Jo 4, 42). Foi a seu pedido que se demorou em Sicar, para que os restantes samaritanos daquela povoação também o pudessem conhecer (Jo 4, 7-42).

É igualmente samaritano o leproso que, curado por Jesus com outros nove que padeciam a mesma doença, lhe foi agradecer o milagre. Dos dez, só ele teve este gesto de gratidão, que mereceu o aplauso e o reconhecimento do Mestre (Lc 17, 11-19).

Na sua luta contra o racismo, a mais impressionante lição de Cristo é, sem dúvida, a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37). Para exemplificar o que é a caridade, Jesus cria uma história chocante: enquanto um sacerdote e um levita são, respectivamente, o mau e o vilão, o samaritano, que sacerdotes e levitas consideravam um ser impuro, é o bom, que é até apontado aos cristãos como o exemplo que devem imitar! Imagine-se que alguém, na Alemanha nazi, narrava esta parábola, mas sendo um judeu o bom e, maus, um ariano e um nacional-socialista! Pois tanto ou mais escandalosa foi a parábola que, há dois mil anos, Jesus contou aos seus conterrâneos, e que era não apenas anticlerical como, até, aparentemente antissemita!

Como o Papa Francisco recorda incansavelmente – não em vão, na ladainha de Nossa Senhora, introduziu uma prece pelos migrantes! – a atitude cristã deve ser de ajuda aos mais necessitados, nomeadamente pelo acolhimento dos refugiados que procuram os nossos países, para neles viver. Atraídos pela cultura europeia, que na sua origem é cristã, procuram a paz e a estabilidade de que carecem nas suas pátrias. Por razão desta sua tradição, os Estados europeus devem ser países acolhedores, como as casas das famílias católicas devem ter sempre lugar para quem precise de ser ajudado.

Mas, a este dever de acolhimento, corresponde a recíproca obrigação de gratidão e respeito pela cultura e leis dos países anfitriões, bem como o compromisso de contribuir, com o seu trabalho, para o bem comum. Quem promove actos de vandalismo e de destruição deve ser responsabilizado, até porque, isentar alguém de um dever básico de cidadania, por razão da sua etnia ou procedência, seria, de facto, racismo. Só é digno da hospitalidade quem respeita o seu novo país, nomeadamente cumprindo as suas leis.

A União Europeia não acertou na política de imigração, mas também está a falhar, por omissão, no que se refere à resposta aos ataques que põem em causa a sua estabilidade e coesão. Ao permitir estas convulsões internas, a Europa desrespeita os seus cidadãos e frustra as expectativas dos que, nela, procuram a solidariedade e a paz, que não tinham nos seus países de origem.

Também Jesus, Maria e José foram emigrantes no Egipto (Mt 2, 13-15), onde podem ter sido recebidos com desconfiança, não só porque esse era, na antiguidade, o estigma do estrangeiro, mas também porque os judeus não deixaram boas recordações naquela terra – recordem-se as sete pragas que antecederam a sua libertação – onde estiveram exilados e foram duramente explorados. Que a Sagrada Família abençoe todas as pessoas que se viram obrigadas a deixar a sua pátria! E que todos os cristãos os saibam acolher, com o coração e com a acção: “Bem-vindo seja quem vem por bem!”