1. Raras vezes, na minha vida fui confrontada com a honra de um convite que é antes do mais um temível desafio. Não pelo livro, por causa de quem o escreveu. Passageira solitária no desconcerto que de início me provocava o Victor, demorei a ver de que lado é que a vida encaixava nele e ele nela. Com o passar dos anos entendi aquela inteligência filha de um pessimismo activo que podia coexistir com a fé, o mistério de uma fragilidade que vivia paredes-meias com uma desapiedada lucidez. Victor Cunha Rego tinha as tormentas como certas. Admirei-o muito, guardo-lhe um imenso respeito. Amava a verdade e praticava a coragem mesmo quando estas o faziam sofrer. Captava o ainda não captado, traduzia-nos o mundo que habitava e, claro, era um sedutor: tornei-me devota e… de quantas pessoas seria eu capaz deste desabafo?

Teve muitas vidas, ofícios, lugares. Vendeu lâmpadas e ferros de engomar de porta a porta, foi expulso de alguns países, às vezes não tinha papéis, houve mandados de captura internacionais. Conheceu meio mundo, fez muitas coisas, acreditou em poucas. Um dia, quando me abria esses leques, lembrou-se de Stendhal: “Do ‘Lamiel’ ao ‘Le Rouge et le Noir’, você tem lá todos os personagens que compõem as setes vidas e os sete ofícios…”

Trocámos olhares, almas e risos, discorremos mil vezes sobre esta coisa da política, demos mil voltas à vida.
Talvez porque soubesse que as ideias têm consequências e as enfrentava nesse lugar incerto que precede a ilusão, confessava-me que “ia perdendo sucessivas batalhas”: “Perdi muitas batalhas políticas, mas ganhei uma: sempre que enfrentei o PC ganhei. Batalhas pequenas, mas ganhei sempre.” E um dia ouvi-lhe isto: “Empenhei-me politicamente na bipolarização e na alternância do poder. Esses princípios venceram. Não sei é se convenceram, ou ficarão muito tempo…”. Venceu a batalha que interessa que é a da inocência e da boa fé. Com cepticismo e muita compustura.

Na minha cabeça misturam-se hoje imagens, bocados de vidas e de conversas, restaurantes, comboios, bares de hotéis, campanhas políticas, jantares, resultados eleitorais. A casa dele e a minha, o André e o Vicky quando ele queria falar-me deles.

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Lembro-me do Victor em reuniões, a cabeça inclinada sobre as mãos, o olhar distante e aparentemente distraído, o humor oblíquo, e recordo como de repente se soerguia e emitia para o ar o essencial do que deveria ser conversado, escrito ou feito.

Leu antes de ninguém em desordenadas folhas de print ainda quentes do meu computador os livros que fiz com Mário Soares, leu-os na penumbra da Travessa do Pinheiro, 23, 3.°. Uma sala exígua e sempre fria onde havia, numa mesinha baixa frente à janela, um minúsculo cinzeiro de vidro atulhado dos nossos cigarros que ele se esquecia de despejar. Quando nos deixou, eu pedi o cinzeiro, o André nunca mais o encontrou, o Victor levou-o de certeza.

Às vezes, Deus passava por ali, havia uma alusão mais sentida, uma invocação breve. “Eu tenho muita fé, ela é a única maneira que temos de fazer com que a nossa inteligência viva acima dos seus próprios meios, que uma certa dignidade tenha algum espaço e algum sentido.” Ia às igrejas a horas mortas, procurando um porto de abrigo que lhe pacificasse a fé que praticava, lembrando-se de Job, outro anti-herói. Deus, que nunca o perdeu de vista, queria-o por perto. E o Victor ficou.

2. O livro que hoje nos ocupa é de um jornalista inclassificável. Abstenho me de o definir — não seria capaz –, direi o que ele me disse, por uma vez consentindo-se um laivo de auto-reconhecimento: “Sim, filha, fiz bom jornalismo. Comecei e acabei com ele, era o meu fio de Ariane”.

Este livro é uma surpresa e um privilégio. A surpresa é este Victor antigo, menos nosso conhecido, escrevendo  na lonjura do seu exílio além-Atlântico; o privilégio é o acesso que estas páginas nos permitem ao seu pensamento, cunhado em meio século de uma vida que também foi a nossa. “Na prática a teoria é outra” (Dom Quixote-Leya) é um grande livro em português, escrito por um patriota português.

Não o esperávamos, em Portugal morre-se de vez e tem-se isso como um hábito ou uma fatalidade. Mas, hoje, estes textos tão laboriosa e inteligentemente selecionados pelo André Cunha Rego e pelo Vasco Rosa trazem-nos intacto o ar dos muitos tempos que o Victor testemunhou, com alguns dos quais privou intimamente, nalguns dos quais interveio directamente. Trazem-nos o perfume e a substância de um imenso arco de tempo que vai dos anos 50 até ao final dos 90. Vocação e aventura iniciadas no Diário Ilustrado em Portugal, em 1956, continuaram no seu exílio em influentes jornais internacionais, até ao seu regresso a Portugal em Março de 74 onde Victor voltou, com rigor e fulgor, a pensar em voz alta para nós.

É Jose Cutileiro que aqui apresenta o jornalista, com essa invejável inteligência, a subtileza, o refinamento e uma admirável justeza de tom só possíveis pela fecunda, cúmplice, lealíssima amizade entre estes dois homens tão dotados.

Das prosas do exílio — que têm como cicerone o interessantíssimo texto de Otávio Frias, filho, director do jornal “A Folha de S. Paulo” — temos o Brasil, Europa, Américas. Portugal, claro, Salazar, as oposições, a preocupação de Cunha Rego com África, na senda de um Norton de Matos ou de um Henrique Galvão. Política e vida. Temos tudo, diria eu, e ainda alguns retratos. Retive o de Henrique Galvão, breve excerto: “O Galvão era um romântico, um desprendido, um intelectual… Atraía-me por esse lado. Humberto Delgado nunca me atraiu. O que me ligava ao Galvão era o problema africano, achávamos que ou se chegava a África antes dos comunistas ou chegavam eles. Aliás, o problema era o mesmo aqui, correr contra o tempo, chegar antes deles.”

Regressado ao país, Cunha Rego dirige o DN entre 75/76, na quentura do PREC. Quase dez anos depois, segue-se o vespertino A Tarde, aqui tão bem introduzida por Manuel Lucena, “o maior amigo”; e depois o Semanário que VCR fundou e dirigiu oito anos, rodeado por alguns dos nossos melhores. Uma boa história que José Miguel Júdice também aqui nos conta num regalo de informação e memória.

Nas vésperas de o Semanário ir para a banca, perguntei ao Victor o que seria o jornal. Eis a sua extraordinária resposta: “Um jornal não substitui um governo e não deve sequer criar um partido. Mas sendo esta República menos generosa e menos patriótica que a de 1910/26, e não havendo moral e civismo que originem uma Seara Nova, há que tentar, no modelo intermédio entre a revista doutrinária e o jornalismo, acompanhar os últimos passos deste sistema, e em liberdade, dizer que é preciso o que é preciso”.

3. Foi o que o Victor fez, no jornalismo e na política num combate desigual: o Victor destoava. Via mais longe, antes dos outros, e, pior, estava de boa fé e cultivava a ética. Dividia, perturbava, confundia. Destoou logo no rescaldo dos festejos do 1.° de Maio de 74, face ao que ele classificou de “ tremendo equívoco” traduzido na alegria com que “a burguesia e a classe média” acolhera e participara nos festejos.

“Mário, está tudo perdido”, disse ele nessa própria noite a Soares, que o ouviu como se ele fosse de Marte. Não era de Marte, estamos bem lembrados. Mas foi no PS que lutou, e ao lado de Mário Soares, nessa tão sobressaltada relação, quente e fria, fascínio e evidência. E sempre dizendo “que era preciso o que era preciso” aos ouvidos ainda demasiado surdos de civis e militares. “Os comunistas chegaram onde eu disse e isso deu-me força moral de tornar a avisar as pessoas…”.

Sempre esteve dentro da política: no palco, com cargos oficiais e responsabilidades directas, ou oficiando na penumbra, mas sempre, como aqui diz o Manuel Lucena, “florescendo à beira de precipícios”. A sua ética era inversamente proporcional à ilusão — a primeira era-lhe congénita, a segunda quase nunca existiu.

Gostou de Madrid, onde foi embaixador nomeado por Mário Soares e Medeiros Ferreira, e terá apreciado o reconhecimento público obtido: pela sua colaboracão no Tratado que viria a substituir o Pacto Ibérico; e pelo prestígio — diplomático, político, social e pessoal: “A Embaixada de Portugal juntava naquele tempo Adolfo Suarez com González, ou Santiago Carrillo com Fraga Iribarne. E fazia-o com grande à-vontade… E eu juntava todos os portugueses sem excepção que se haviam exilado em Espanha, congregando-os numa casa mãe.” .
Depois, como o PS se portou mal com ele, a honra pesou mais que a pena e a ética mais que o luto, saiu de Madrid e despediu-se da família socialista.

Aproximou-se de Sá Carneiro, de quem dizia que “se odiava ou admirava e ele admirava”. Tentara até uma aliança de regime entre ele e Soares, em nome de um desejável pedido comum de adesão à então CEE, organizando encontros sigilosos, saldados por rotundos fracassos. Sá Carneiro, que lhe admirava o carácter, foi um dia a Madrid perguntar-lhe se o PSD, em 1979, deveria concorrer em listas comuns com o CDS. Cunha Rego disse-lhe “que era preciso fazê-las”, senão, mais valia sair da política. Já primeiro-ministro, o líder da AD leva-o para o seu inner circle, que reunia às segundas em S. Bento e oferece-lhe a “cruz” — palavra de Victor – da presidência da RTP. O então primeiro-ministro convidara-o mais que uma vez para o seu governo, o convidado recusara sempre. Face a proposta de outra natureza, ter-lhe-á sido porventura difícil voltar a recusar.

4. Não se pode falar do jornalismo de Cunha Rego sem falar de tudo isto — e muito resumo eu. Sem evocar a política e a imprensa, as duas faces da sua moeda. Indesligáveis.

A ida para a A Tarde é a vontade de reerguer das cinzas o espírito e a letra da AD; o Semanário não é senão a trave mestra de sempre: mudar o regime, civilizando-o, estruturando-o com a bipolarização e a alternância de poder, autonomia da sociedade civil, iniciativa económica, o ar da europeização.

Perguntei-lhe uma vez se andara com a direita às costas. Foi sério na resposta, lúcido na análise: “Eu sempre me bati pela autonomia da sociedade civil. Ora, a direita estava mais propensa a travar esse combate. A minha passagem pela política coincidente com essa direita era fatalmente episódica e meramente instrumental para os dois lados. Andámos às costas uns dos outros”. Depois, muito naturalmente, voltou para Soares. Voltou para casa, num certo sentido.

Entre 1992 e 99, na última página do DN, com escrita tão clara que chegava a ser luminosa e tão forte que não nos deixava iguais, continuaria a dizer-nos “que era preciso o que era preciso”.

5. Um itinerário geográfico, cívico, intelectual, político, sentimental, só possível porque, dizia-me ele, “fez tudo, sempre, de boa fé” e viveu essas vidas com uma imensa “inocência”.

E o passado, perguntava-lhe eu às vezes, tanta coisa, tanta vida? “Soube, mas já esqueci”, murmurava ele apenas, deixando o olhar perder-se em brumas inconfessáveis. Dizia-me que tivera “sorte, privilégios e recompensas”. Quando largou cargos e encargos, queria escrever as memórias mas “ainda queria mais, se pudesse, escrever uma peça de teatro” que me detalhou com surpreendente júbilo. Intitular-se-ia “O Quarto de Cama” e ele estava entusiasmado com a ideia: “É uma peça passada nos dias de hoje, com quatro personagens, dois casais da mesma geração, representados pelos mesmos actores, que em dois quartos de cama, instalados num palco giratório, repetem as mesmas cenas com resultados muito diferentes. Em função da inocência ou da não inocência — e cá está o problema da inocência outra vez… — dos personagens. Tenho muita vontade de a escrever, é pelo menos aquilo em que penso com mais interesse”.

Não pôde escrever nem uma coisa nem outra porque o dia e a hora vieram antes. Mas, isso, ele sabia que não sabia.

6. Não sei se o Victor queria que o percebessem, por isso o mais natural é que para cada um haja o seu Victor. O meu é este que hoje aqui deixo: um solitário cavaleiro de cristal, desencantado e patriota.

Texto lido por Maria João Avillez no lançamento do livro “Na prática a teoria é outra” (Dom Quixote-Leya), que reúne as crónicas de Victor Cunha Rego.