O programa de “imunização” e a forma como será executado é um dos temas do momento. No dia 17 de Março de 2021, a Comissão Europeia apresentou a «proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um quadro para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, testes e recuperação, a fim de facilitar a livre circulação durante a pandemia de Covid-19», que prevê a criação de um “Certificado Verde Digital1.

É gratuito, possui um código de barras para leitura e verificação de autenticidade, validade e integridade, tanto na versão digital como impressa, e apresenta as seguintes informações na língua oficial do país de emissão e em inglês: o nome, os apelidos e a data de nascimento da pessoa; o tipo e a marca de vacina; a empresa autorizada a fabricar e a comercializar a vacina e o número de doses necessárias; a data da inoculação; e a identificação do emissor. Além destas informações, inclui ainda informações relativas a eventuais testes negativos ou positivos2.

A Comissão Europeia defende que este tipo de certificado não deve ser encarado como uma condição para o exercício da liberdade de circulação, nem, muito menos, estabelece uma obrigação ou um direito a ser vacinado, mas sim como uma ferramenta fundamental para, através de uma política comum, assegurar a liberdade de circulação, em segurança e através de um procedimento célere, de todas as pessoas que tenham sido inoculadas3 com qualquer uma das vacinas autorizadas pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA)4.

Porém, em jeito de contradição, todas as pessoas que não foram ou forem vacinadas, por impossibilidade ou vontade, apesar de poderem deslocar-se livremente na mesma, ficam sujeitas, sempre que a lei dessa jurisdição exija, a testes obrigatórios ou a quarentena obrigatória. Para não falar de eventuais restrições no âmbito de entrada em determinados espaços públicos ou na prática de determinadas actividades (como sucede actualmente em Israel, conforme melhor veremos infra).

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De uma forma (muito) genérica, é possível afirmar que este tipo de medidas não é, de todo, novidade. Basta pensar na epidemia de febre amarela que ocorreu nos EUA, entre 1850-1870. Nessa altura, foram igualmente impostas restrições, por exemplo, no acesso ao emprego. Mais tarde, na primeira metade do século XX, a liberdade de circulação foi também condicionada. Há décadas que é necessário fazer prova de vacinação contra doenças consideradas graves (como a própria febre amarela, ou mesmo o vírus da rubéola, a cólera, a malária, a difteria, etc), concretamente através do InternationalCertificateofVaccination5.

Mas nem sempre é necessário recuar tão longe no tempo, basta, para o efeito, recordar que em Portugal, em 1965, entrou em vigor o Programa Nacional de Vacinação e com isso foi instituído o Boletim Individual de Saúde (que, hoje em dia, é apelidado de Boletim de Vacinas Electrónico). Como é sabido, muitas actividades encontram-se condicionadas à apresentação desse boletim, inclusive a inscrição de crianças no ensino privado (no ensino público também é exigida a apresentação, mas o acesso não pode ser recusado).

Contudo, apesar deste tipo de medidas não ser novidade, existe um factor que acaba por ditar uma grande diferença: a escalabilidade, aliada à componente digital. Enquanto os anteriores programas de imunização de doenças graves visavam mitigar problemas pontuais, locais ou regionais, o actual programa de imunização visa mitigar um problema global – e isto, através da criação de uma base de dados digital de vacinados (no nosso caso, para já, europeia). Este factor multiplica e amplifica as questões de ordem ética, técnica, social, moral e, sobretudo, legal.

Desde logo, é perfeitamente legítimo questionar se estamos perante uma decisão prematura, uma vez que, segundo aquilo que é possível apurar (ou, pelo menos, aquilo que é noticiado), ainda não existe (nem se vislumbra que, a curto prazo, venha a existir) informação rigorosa, suficiente, completa e clara, no que respeita aos próprios riscos, vantagens ou efeitos (a curto, a médio e a longo prazo) das vacinas até agora produzidas (em tempo recorde), ou, sequer, sobre o impacto e alcance das múltiplas variantes até agora conhecidas do SARS-CoV-2. Depois, convém relembrar que existem cerca de 3,6 mil milhões de pessoas em regiões sem acesso à internet e que cerca de 1,1 mil milhões não têm condições, sequer, para fazer prova da sua identidade, quanto mais para proceder à realização de um teste Covid-19 ou receber a própria vacina. Por estas razões, não é tecnicamente possível implementar um sistema único, muito menos europeu ou universal6.

Relativamente aos efeitos desta medida, quer em termos éticos e morais, quer do ponto de vista legal, colocam-se questões preocupantes. Veja-se que, recentemente, foi noticiado que o Estado de Israel implementou um “green pass” (i. e., um certificado de vacinação com código QR), que é atribuído às pessoas que já receberam, pelo menos, a primeira dose de vacina. Para esse efeito, devem instalar a aplicação informática no seu dispositivo móvel para, sempre que solicitado, apresentarem o “green pass”.

Esta medida visa, portanto, restringir o acesso a espaços públicos, locais de trabalho, aeroportos, escolas, entre outros, a pessoas que ainda não receberam a vacina, alegadamente com vista a mitigar o risco de transmissão da Covid-19. Por outras palavras, qualquer pessoa que pretenda entrar em determinado local ou praticar determinada actividade, terá de fazer prova da sua imunidade. A China apresenta um sistema em tudo semelhante7.

Tudo indica, que tanto o “green pass” como o sistema chinês comprimem o direito à circulação, à educação e à igualdade no acesso a emprego e no trabalho, cristalizam as desigualdades sociais e consolidam um sistema onde uns são filhos, outros enteados (à semelhança do que sucedeu nos EUA durante a epidemia de febre amarela, onde as pessoas menos favorecidas foram de longe as mais afectadas). Devemos, por isso, questionar se o dito “Certificado Verde Digital” coloca os mesmos problemas, até porque, “se a vacina não é obrigatória, não se pode discriminar não vacinados”. Aliás, neste caso, dada a escalabilidade, aliada à componente digital, devemos, acima de tudo, questionar se esta medida coloca a nossa liberdade de circulação e de reunião ou associação, autonomia privada, privacidade e segurança de dados em causa – mesmo que (ainda) não seja de forma compulsória.

Mais do que isso, devemos questionar se este tipo de medidas pode contribuir para a criação de um sistema geral de identificação que, além de registar e armazenar os nossos dados pessoais, pode ainda ser utilizado para rastrear a nossa localização, concretamente através do registo de entrada em locais (além dos aeroportos, claro) onde seja exigida a exibição do certificado. A ser esse o caso, tudo indica que os nossos Direitos, Liberdades e Garantias podem estar em risco. É difícil visualizar um mundo onde existe uma forma digital de monitorizar todos os nossos movimentos e actividades, ou seja, um mundo onde não podemos passar pela porta de um local de trabalho, escola ou, mesmo, um restaurante, sem sermos fiscalizados através do nosso dispositivo móvel e ser inscrito o registo dos nossos dados pessoais nesse local e, por sua vez, numa única base de dados. Nesse cenário, a hípervigilância será completamente banalizada e normalizada, tal como a aceitação acrítica e a submissão das pessoas perante este tipo de medidas.

Um sistema de vigilância desta natureza pode, muito facilmente, ser ampliado para registar não apenas a situação de imunidade da pessoa, mas qualquer outra informação pessoal que as autoridades venham a considerar necessária – por exemplo, com vista a prevenir ou combater determinado problema que entretanto suceda… Já dizia Thomas Jefferson: “When injustice becomes law, resistance becomes duty”.

(1) Vide ainda a proposta relativa a cidadãos de Estados terceiros com residência na UE ou nos territórios dos Estados-membros, disponível para consulta aqui

(2) Sobre as especificidades do certificado (não inclui especificidades técnicas), vide o projecto da eHealth Network, «Interoperability of health certificates Trust framework V.1.0» datado de 12 de Março de 2021 e disponível para consulta aqui.

(3) Vide, a este respeito, o «Comunicado da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho: um caminho comum para uma reabertura segura e sustentada», acessível aqui.

(4) As informações relativas às vacinas encontram-se disponíveis para consulta aqui

(5) A este respeito, vide as informações constantes da página de internet da Organização Mundial de Saúde.

(6) Vide, a este respeito, a notícia do CNBC, «Vaccine passports’ will help you travel abroad this year. But they won’t be without their challenges», datada de 5 de Março de 2021.

(7) Sobre o sistema de vigilância na China, vide a notícia do New York Times, de 1 de Março de 2021.