A guerra na Ucrânia fez sobressair as melhores qualidades dos portugueses. A solidariedade e o espírito de entreajuda que levaram milhares de pessoas a irem buscar refugiados ucranianos e a acolhê-los em suas casas, muitas vezes com grande sacrifício pessoal, revela a nobreza de alma do povo português. Infelizmente, a crise ucraniana também fez sobressair as piores qualidades de alguns portugueses. Quer dizer, de um português. Para ser preciso, as minhas. Sobretudo, o egoísmo e a falta de carácter que estão por detrás da minha irritação por haver tanta gente a praticar boas acções enquanto eu não mexo uma palha. Nem por compatriotas, quanto mais por ucranianos: ainda nem sequer me dei ao trabalho de tratar da consignação dos 0,5% do IRS a uma boa causa, por ter fastio em mandar um SMS à minha contabilista.

Considero-me um estóico das redes sociais. Não me deixo abalar pelas estupendas vidas que por lá andam. Consigo ver no Instagram, sem ponta de inveja, fotografias de festas espectaculares, de jantares de grupo muito divertidos, de férias paradisíacas em ilhas desertas, de filhos perfeitos que combinam excelência académica com a titularidade da selecção nacional de rugby e uma cara livre de acne. Até me congratulo com estas demonstrações de contentamento alheio. Chego mesmo a carregar no coraçãozinho. Mas, desde o mês passado, tenho de admitir que já desamiguei várias pessoas só para não ter de comparar os sorrisos das famílias ucranianas que elas estão a ajudar, com o ar sisudo da família ucraniana por quem não estou a fazer absolutamente nada de nada. Arrelia-me. Não é que me importe de ser má pessoa, não gosto é de ser constantemente lembrado. Não consigo engolir nem mais um ucraniano feliz com a sua nova família portuguesa. Ou uma família portuguesa feliz com o seu novo ucraniano, já nem sei bem.

(Vêem? É este género de aparte acintoso que não consigo evitar).

“O meu Vasily já trabalha!” “O Iuri montou uma start-up em 5 dias!” “Ao fim de uma semana, a Svetlana é a melhor aluna da turma a português!” Chega a parecer que há uma competição para ver quem tem o melhor refugiado. E quem lhe proporciona melhores condições de refúgio. Uma família ucraniana é a nova casa na Comporta. É a semana de ski nos Alpes para os friorentos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

(É muito azedume da minha parte, eu sei).

A procura é tanta que há quem chegue a meio da Roménia e carregue logo o carro com quaisquer pessoas, desde que sejam loiras. E já começa a haver falta de ucranianos de qualidade a quem prestar ajuda. Soube de um conhecido que arranjou uma camioneta de 70 lugares para ir à Ucrânia levar ucranianos que já cá estão, para que os portugueses depois tenham oportunidade de poderem ir lá auxiliá-los.

(Eu avisei que isto me estava a tornar muito mesquinho).

Haver tantas boas pessoas a fazer tanto bem está-me a deixar com uma azia tramada. Sinto-me a pior pessoa do país. Felizmente, sei que isso não é verdade: pior que eu ainda há os militantes do PCP. Posso não receber ucranianos em casa, mas os comunistas vão mais longe e recusam-se a sequer falar com um deles por Zoom. O PCP foi o único partido a votar contra o convite a Zelensky para discursar na AR. É estranho que um partido que gosta tanto de revoluções, rejeite desta forma a revolução digital.

O PCP considera que receber uma videochamada do Presidente de uma nação invadida encoraja a guerra. E talvez tenha razão, se pensarmos que conversar com um mendigo sobre as suas necessidades é um incentivo à pobreza. Mas eu percebo o PCP. Também não gosto de ser incomodado com telefonemas de pessoas a falarem de produtos que não me interessam. A mim são os pacotes de voz + dados móveis, não vejo utilidade nenhuma nisso. Aos comunistas é a liberdade e a democracia.

Esta guerra obriga-me a fazer uma auto-análise profunda. Olho para a minha inércia com o que se passa na Ucrânia e para o cinismo com que encaro quem ajuda, e penso: “Zé Diogo, és um escroque. Mas ao menos não militas no PCP”.