Quando estamos de luto, a vida sofre um movimento estranho, no qual todos os assuntos que sempre foram centrais nos nossos dias, de repente, mudam completamente de posição. O luto – espaçoso e imponente – se coloca numa posição central, como um planeta, obrigando todo o resto a se tornar satélite, periférico e secundário.

Quando perdi meu pai, vivi uma cegueira momentânea. Não havia saída, não havia mais nada. Por alguns dias, eu tive certeza de que não conseguiria sair daquele redemoinho e de que não haveria volta possível para uma vida razoavelmente normal. Mas a vida não dá trégua: é preciso entregar os prazos do trabalho, buscar as crianças na escola, pagar a conta de luz, comprar medicamentos na farmácia. A vida, por si só, vai te arrastando para fora do redemoinho.

Mas isso não quer dizer, de forma alguma, que as coisas voltem subitamente a ocupar os lugares que ocupavam antes. É como se estivéssemos constantemente dentro de uma nuvem de fumaça chamada luto, tentando enxergar o restante da vida, que nos chama do lado de fora da nuvem. Mas a fumaça está ali – e ela não vai embora em um mês, nem em três e, pelo que estou vendo, em seis também não.

Acho que a definição mais exata que consegui para o sentimento de perder um pai foi o que disse quando, há poucas semanas, derramei algumas lágrimas no meio da rua, ao passar por uma pastelaria que dizia “desde 1951”, que era o ano de nascimento do meu pai. Disse que é como estar caminhando na rua, sem lembrar especificamente da perda e, de repente, tomar um soco na cara.

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Você está indo até o supermercado. De repente passa um carro igual ao do seu pai. E por dentro você precisa dizer “meu pai morreu”. Na realidade, um soco na cara dói bem menos. Depois você entra no mercado e cruza com uma garrafa do vinho preferido dele. Ele morreu. Eu já não vou comprar esse vinho para ele. É outro soco. Ou é chutar a quina da mesa. Ou é uma cólica violenta. É, na verdade, uma dor pior do que todas essas juntas. E depois o rapaz do caixa tem o mesmo nome que seu pai. Nocaute. Nocaute. Como o seu dia poderia não terminar ali?

Não é nada raro. Uma comida da qual a pessoa gostava. Um lugar ao qual ela costumava ir. Um programa de televisão. Uma marca de sapato. Um livro. Qualquer coisa. O amor se espalha intensamente e o luto aparece na mesma medida. Precisar lembrar, a cada pequena coisa que se vê, que nunca mais se verá alguém que se ama profundamente, é um soco no rosto. Dos mais fortes, mais brutos, mais violentos. Não há outra forma de explicar.

Por isso é impossível pedir para alguém que está de luto deixar isso para lá. Ou ir mais depressa. Não há rota alternativa – porque todas elas estarão povoadas de memórias e, consequentemente, de socos. Não adianta fechar os olhos, porque virão os ruídos. Não adianta correr. Não adianta trancar a porta. Não adianta. Dizem que o tempo vai trazer alívio. Não sei se será alívio, talvez seja uma espécie de anestesia. Uma falta de sensibilidade que virá da dor constante. Não sei. Mas espero que ela venha de alguma forma. Porque por ora, é só nocaute. Todo dia um nocaute. E isso cansa.