Uma epidemia de sensibilidade percorre o PS. E não, não é a da habitual indignação altaneira fundada na firme superioridade moral. A sensibilidade em questão manifesta-se em paixões pouco habituais por aquelas plagas, como a vergonha, a vergonha por José Sócrates se ter introduzido no seu seio e ter manchado a ancestral honra do PS. É um pudor estranho, vindo de quem vem. Tanto mais que essa espécie de virgindade surpreende porque, como dizia o outro, vem de pessoas que já conhecemos muito bem antes de serem virgens. Aliás, houve uma altura não muito longínqua em que a libertinagem, por assim dizer, era a regra.

Claro que tudo isto é pura encenação que não engana ninguém. A manobra táctica para anular um peso inconveniente antes das eleições é patente. Mas a famosa habilidade de António Costa (que ecoa, de resto,  célebre “espertice” de José Sócrates) encontra aqui mais uma oportunidade de encantar os admiradores. A coisa é cosida com fio grosso, a artificialidade dos sentimentos é óbvia. Mas quanto mais óbvia a simulação, mais facilmente ela passa. Só há uma coisa necessária para simular assim a vergonha: falta de vergonha. Admito que num ou noutro caso, nas periferias do PS, a falta de vergonha não seja o ingrediente originário e seja necessário imaginar no fundamento desta rejeição tardia de Sócrates algo de mais profundo e eventualmente mais patológico. Mas no caso do PS a falta de vergonha basta. De resto, não funcionou ela muito bem com o próprio Sócrates? A falta de vergonha não seduziu por muito tempo o PS, desde que este, para nossa desgraça, abraçou por inteiro os “espertos”, e agora os “hábeis”?

Não vale a pena perder muito tempo a epilogar sobre tudo o que foi escrito sobre esta matéria e que representa, no conjunto, o que qualquer cidadão que não viva noutra galáxia pensa espontaneamente. Nada do que o PS disse a várias vozes, de Carlos César ao histriónico João Galamba, é sério ou para levar a sério. Aquela gente vive num universo em que a conveniência política, definida em termos que pertencem estritamente ao jogo que entre si praticam, traz consigo quase inevitavelmente o desprezo pelo entendimento comum e pelas condutas de boa-fé. Consequência directa dessa atitude são, por exemplo, os fogos do ano passado e a trapalhada que se anuncia para este ano. A esperteza e a habilidade têm coisas destas.

Mas se não vale a pena discorrer mais sobre o assunto, há algo sobre o qual faz provavelmente sentido reflectir. Imaginemos que José Sócrates é, de facto, como tudo parece indicar, o personagem que reúne em si todas as condições para inspirar o presente horror do PS. E imaginemos que, com a excepção de Manuel Pinho, os seus governos eram formados por gente sem sombra de comportamento repreensível nestas coisas. Imaginemos também – é uma suposição necessária – que nenhuma dessa gente por um só segundo suspeitou, ao longo desse demorado convívio, de nada de estranho em Sócrates e por isso, com a ajuda prestimosa de, entre outros, Pinto Monteiro e Noronha de Nascimento, sempre o defendeu de todas as suspeitas públicas com vigorosa virtude. Por mais problemática que seja esta última suposição, a verdade é que, a aceitá-la em conjunto com as outras duas, a actual posição do PS é formalmente defensável. A habilidade de Costa continua a ser isso, uma habilidade, mas formalmente justificada.

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Pensemos, no entanto, noutro aspecto. No que me toca, e partilho essa experiência com muita gente, o que a partir de uma certa altura me assustou em Sócrates, vário tempo antes da sua fatídica reeleição, pouco ou nada tinha a ver com as suspeitas de corrupção, mas estritamente com as suas políticas catastróficas, que nos viriam a conduzir direitinho para o abismo. Mesmo no que respeita à corrupção e a outros crimes sortidos, o que me fazia impressão e medo era a extraordinária máquina de apoio e protecção com que Sócrates contava na justiça e noutros lugares, uma máquina tão poderosa e omnipresente que levou um dia Paulo Rangel a cunhar com acerto a expressão “asfixia democrática”. Mas em primeiro lugar eram as políticas em si que patentemente anunciavam a catástrofe iminente.

Agora, a questão: quem, entre a recente legião de sensíveis envergonhados, que, a começar pelo actual primeiro-ministro, transitaram dos governos Sócrates para o de António Costa, se levantou para dizer o óbvio? Que se saiba, ninguém. Virgens numa matéria, a da corrupção, serão, e até inocentes de qualquer suspeita, mesmo que isso nos obrigue a supor neles uma quase idiotia a roçar a oligofrenia, que parece ser contradita por uma aparente inteligência e verbo fácil. Mas virgens em matéria de acordo com as mais irracionais – e irracionais a olho nu e desprevenido – políticas praticadas por Sócrates certamente não são. Dir-se-á que confundir políticas discutíveis (é um eufemismo) com a grave matéria da corrupção releva da ignorância ou da má-fé. Mas não estou a fazer confusão nenhuma. Distingo muito bem uma coisa da outra. Limito-me a dizer que há políticas que são catastróficas para além de qualquer dúvida razoável. E que pactuar com elas e, com cara de pau, continuar a insistir na sua justeza (não foi o legado político de José Sócrates um legado que suscita “orgulho”, nas palavras de Carlos César?), anula por inteiro as proclamações de “vergonha”.

Se me permitisse um conselho às pessoas que no PS procuram refundar um partido saudável, ele seria: não procurem uma solução esquizofrénica que, por um passe de mágica, faça com que as duas faces da mesma moeda pertençam a moedas diferentes. Não funciona: é mais uma habilidade que, mais cedo ou mais tarde, se pagará caro. A única maneira de tornar a tal “vergonha” credível é não pretender que ela pode conviver com o “orgulho”. Até essa admissão, a posição oficial do PS só pode suscitar incredulidade. E, em momentos de maior sensibilidade (todos temos direito a eles), nojo e desprezo.