Mais uma vez, o PS entrou em estado de histerismo com o despautério que Aníbal Cavaco Silva demonstrou ao respirar, ao falar e ainda — como se isso não fosse ousadia suficiente para quem não ostenta o cartão do Partido Socialista — ao criticar o santo governo de António Costa.

Os socialistas reagiram de muitas e variadas formas, todas más — mas a pior das piores estava reservada para um dirigente do PS que há uns anos informou a nação de que é amigo de António Costa desde tempos imemoriais. Mais concretamente: “Há dois terços do tempo da sua e da minha vida”.

Ascenso Simões, que em 2021 defendeu que o Padrão dos Descobrimentos devia ser destruído, voltou agora a mostrar que, para alguns socialistas, a História é apenas mais uma arma política. Num artigo que publicou esta semana no Expresso, Ascenso Simões dedicou-se a distribuir juízos de moral usando a figura de Sá Carneiro contra Cavaco Silva e a favor do PS, comparando os problemas políticos de Fernando Medina com os do fundador do PSD. Lembrando que Sá Carneiro foi alvo de uma das maiores campanhas de sempre contra um político, o membro da comissão política do PS esticou o dedinho acusador e dedicou-se à sempre nobre tarefa de reescrever a História. Usando esse triste processo, Ascenso Simões tentou fazer três coisas. Primeira: criar vilões políticos de forma retrospetiva. Segunda: ilibar o PS das suas indesmentíveis e documentadas responsabilidades. Terceiro: transformar Fernando Medina num mártir.

Ascenso Simões escreve, com razão, que a campanha contra Sá Carneiro assentou em dois eixos: na relação do fundador do PSD com Snu Abecasis e na suposta dívida que teria evitado pagar a um banco nacionalizado depois da revolução.

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Sobre a relação de Sá Carneiro com Snu, Ascenso Simões afirma isto: “Muitas figuras relevantes, mesmo algumas que vieram a ter grande presença na vida política portuguesa, aparentavam afastar-se, como parecia ser o caso, ao tempo, de Maria Cavaco Silva”. Tem graça porque, na altura, nem Snu Abecasis nem Sá Carneiro se sentiram especialmente incomodados com este suposto afastamento de Maria Cavaco Silva, mulher do então ministro das Finanças da AD. Mas, pelo contrário, sentiram-se os dois muitíssimo incomodados com o comportamento de outra personalidade que o texto de Ascenso Simões oculta: Mário Soares.

Na época, em declarações à RTP, o líder do PS disse que considerava inaceitável a posição hipócrita dos católicos conservadores que aceitavam sem críticas a relação de Sá Carneiro. Para Snu, foi demasiado. Quando, pouco tempo depois, se cruzou com Mário Soares no Parlamento, ignorou-o. O líder do PS foi atrás dela e pediu-lhe: “Snu, nós somos amigos, não me recuse um aperto de mão.” A resposta foi: “Não lhe aperto a mão”. Acompanhada por Maria José Freitas do Amaral (que Ascenso Simões refere no seu texto), Snu desabafou: “Estou muito nervosa. Não é só por eles nos terem feito isto, mas porque perdi um grande amigo”.

Soares não foi o único socialista a usar o tema para prejudicar politicamente Sá Carneiro. Na mesma altura, um deputado do PS pediu a palavra na Assembleia da República para questionar o ministro dos Negócios Estrangeiros, Diogo Freitas do Amaral, sobre supostas “dificuldades protocolares” relacionadas com “situações de privacidade moral ou outra”. Toda a gente percebeu a insinuação: corriam rumores, falsos, de que alguns governos europeus recusariam receber Sá Carneiro se estivesse acompanhado por Snu.

No seu artigo, Ascenso Simões escreve sobre a outra campanha contra Sá Carneiro — mas também aí tem alguns lamentáveis problemas de memória. O seu texto diz isto: “Sá Carneiro haveria de ver a sua esfinge inscrita em notas falsas de mil escudos, circuladas por todo o país, como que representando um empréstimo, nunca pago, a um banco e um roubo aos bens da família. Foi, entre a primavera de 1979 e dezembro de 1980, uma permanente campanha de difamação, sem autores, sem rede, atravessando todo o país.”

Foi, de facto, “uma campanha de difamação permanente”, carburada durante anos pelo PCP e pelo seu jornal, “O Diário”. A primeira notícia sobre o tema foi publicada logo em 1976 e iria reaparecendo, de acordo com as conveniências políticas, em 1977, em 1978, em 1979 e, claro, com Sá Carneiro primeiro-ministro, em 1980. Ao longo de todos esses anos, o líder do PSD sempre ignorou as insinuações, recusando-se a comentá-las em público. Mas tudo mudou a 12 de agosto de 1980. E mudou porquê? Ascenso Simões não conta essa parte da história, mas mudou porque, nesse dia, o PS aliou-se aos comunistas neste ataque a Sá Carneiro.

Os deputados socialistas Jorge Sampaio, Almeida Santos e Alberto Arons de Carvalho pediram que o Parlamento se reunisse durante as férias para votar uma proposta do PS para a criação de uma comissão de inquérito à “dívida de Sá Carneiro, de 32 mil contos, à banca nacionalizada”. Mário Soares juntou-se à iniciativa com esta declaração aos jornais: “Lamento que não tenha tido o Dr. Sá Carneiro a hombridade de tomar essa iniciativa”. A proposta do PS foi chumbada, mas Sá Carneiro sentiu que precisava de falar ao país por estar em causa uma iniciativa do maior partido da oposição. Juntou todos os ministros do seu governo e fez uma comunicação pela RTP.

Isto, obviamente, não travou os rumores. E, de facto, como escreve Ascenso Simões, começaram a aparecer em todo o lado notas falsas com uma caricatura de Sá Carneiro. Só falta contar uma coisa: na altura, quando sugeriram essa operação a Mário Soares, o líder do PS achou “graça” e pensou que ela teria “alguma utilidade eleitoral”.

Mais tarde, Mário Soares arrependeu-se publicamente da forma como se comportou nestes dois episódios. Mas um certo PS esquece agora isso, julgando talvez que passou demasiado tempo e que talvez ninguém se lembre. É extraordinário: usar Sá Carneiro para atacar Cavaco Silva e endeusar o PS é um feito que só está ao alcance de alguns.

[Ouça aqui o primeiro episódio e aqui o segundo episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”.  A história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]

Episódio 1: O Prisioneiro

Episódio 2: Os Deuses da Morte