1 A pichagem no Padrão dos Descobrimentos, no domingo passado, animou de novo o debate sobre o ataque a monumentos. É claro que o caso beneficiou muito por estarmos num Agosto sequioso de notícias que não sejam Covid. Mas o caso é grave. Grave até pela sua absurda simplicidade.

Espanta que uma pessoa, sozinha ou com pouca companhia, pudesse abeirar-se de um dos principais monumentos portugueses e aí despejar, em absoluto sossego, o seu vandalismo em tinta. E, depois, dali fugir, tranquilamente, sem ser incomodada nem identificada. Crime perfeito: o crime sem responsabilidade. É esta simplicidade da vandalização que constitui um absurdo. E este absurdo é muito grave.

Como Presidente da Direcção da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, manifestei-me logo no sentido de que este caso “tem de representar um ponto de viragem para as autoridades portuguesas, na proteção dos monumentos no espaço público”, apelando, em concreto, ao Governo para que “defina e ponha em marcha, com urgência, um plano de videovigilância do património histórico e monumental português, com prioridade nos monumentos nacionais.”

Devemos prevenir que haja vândalos a fazer isto. E, de cada vez que aconteça, devemos estar certos de que são identificados os autores e levados a tribunal. É indispensável que não fiquem a rir, troçando de todos nós. É indispensável que sejam apanhados e presentes à Justiça. É indispensável que respondam rapidamente pelo crime cometido e paguem, até ao último cêntimo, a reparação dos estragos. (Devo acrescentar que, nas penas destes crimes, não defendo penas de prisão elevadas, excepto em casos muito graves; defendo sempre coimas muito pesadas – as coimas são bem mais dissuasoras do que penas de prisão quando lidamos com exibicionistas dados à vitimização.)

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O que se passou a seguir, quanto ao Padrão, confirma a bondade desta tese. O vândalo é uma vândala; e foi detectada por videovigilância. Exibicionista, como é frequente, ela própria filmou o seu vandalismo e pespegou o vídeo da proeza nas redes sociais. Por acaso, ao acompanhar a tomada de posição da Sociedade Histórica, pude seguir esta descoberta praticamente ao vivo. Dificilmente podia ser mais rápida.

A Sociedade Histórica colocou a minha tomada de posição nas redes sociais, na noite de domingo. Pouco depois da meia-noite, partilhei-a em páginas pessoais. Segunda-feira, manhã cedo, comentários a uma das minhas publicações remetiam-me já para a denúncia da autora. Saltando outra página, lá estava, desde o fim da noite de domingo: “Às sextas vive a vida de uma burguesa, ao domingo vandaliza o padrão dos descobrimentos na luta contra o patriarcado do homem branco opressor. Conheça a humilde Leila Lakel, com um apelido magrebino prevalente na Argélia, e que acha que os descobrimentos foram feitos pelo amor ao dinheiro. ????‍???? Na imagem do monumento vandalizado é possível ver a sua assinatura “LIA” no final da frase, que é o seu username do Instagram.”

Confesso que desconfiei. Mas, ontem, terça-feira, as autoridades judiciárias confirmaram que a suspeita era mesmo Leila Lakel, uma estudante parisiense, já com crónica neste tipo de actos e que, entretanto, fugiu de Portugal. Dá para ver na internet como Leila Lakel prossegue a sua fuga, apagando perfis no Instagram e fotos no Facebook. Mas há suficiente registo dos seus actos no Facebook, no Instragram, no Twitter e até por um vídeo no YouTube. Não há dúvida: foi apanhada pela videovigilância. Neste caso, com assinatura de autora.

Esperemos que a cooperação policial e judiciária europeia cumpra, agora, o seu papel e faça o que deve. Leila Lakel tem que responder e os cúmplices que tenha também.

2 Este vandalismo é um fenómeno do nosso tempo, animado por alguma estupidez. É como se os promotores deste tipo de contra-cultura acreditassem que conseguem rectificar o passado ao mutilarem, conspurcarem ou derrubarem monumentos tidos por símbolos do seu objecto de ódio. É uma espécie de auto-de-fé sobre mármore, bronze, granito ou outros materiais escultóricos e arquitectónicos. Neste tempo cheio de “fobias”, acrescentemos mais esta: a monumentofobia. São os monumentófobos ou monumentofóbicos, novo flagelo da nossa idade. Actos de contra-cultura sem hífen: actos de pura delinquência e selvajaria contra a cultura.

A crença destas tribos é a de que escaqueirar purifica, borrar liberta, humilhar exorciza. É uma crença, por sinal, bastante infantil. Faz lembrar aquelas mães que, quando o filho bate com a cabeça numa parede, desatando num berreiro e choro de dor, precipitam-se sobre a parede, gritando: “A parede é má, a mãe dá tau-tau na parede, a parede não volta a magoar o Toninho.” “Má, má! Parede, és muito má.”

Aparentam acreditar que a dor do petiz passa pelo ralhete e o tau-tau na parede. Da mesma forma que os monumentófobos parecem acreditar que o vandalismo sobre a estatuária ou a arquitectura apaga o passado. É, aliás, só disto que se podem ocupar, pois todas as questões de fundo à volta das quais fazem as danças dos seus exorcismos são questões que foram resolvidas há muito: deixaram de ser presente para passarem a apenas passado. E nunca deixarão de ser passado, por mais que a mamã dê tau-tau.

3 Compreendo alguns debates e considero-os incontornáveis: como o racismo ou a escravatura. Outros, não de todo.

Em rigor, o racismo nunca acaba, no sentido de que existe sempre o seu risco, o risco de que regresse ou amplie, o risco de que se agrave outra vez. É uma questão sobre a qual cada geração tem de tomar posição, a sua posição. Por isso, é um debate sempre oportuno, em cada tempo e em cada lugar. Mas também importa cuidar de que o debate responda ao problema, em lugar de o agravar.  Eu não quero, por exemplo, Portugal transformado num Alabama, como uma vez li a Rui Ramos. E, por isso, me assumo lusotropicalista, porque acredito, sem a mais pequena dúvida, que é a melhor resposta ao desafio da multietnicidade de Portugal e um legado social, moral e cultural que nos levará a um futuro sempre melhor. Essa “maneira portuguesa de estar no mundo” é uma grande inspiração, não evidentemente nos lugares e momentos onde não foi assim, mas pelos tempos e lugares onde foi assim e que, por isso mesmo, servem de exemplo e guia.

Quanto à escravatura, não há que a esconder, mas conhecê-la na sua realidade. Não tem nada de brilhante, mas tudo de detestável e hediondo. Neste domínio, infelizmente não fomos melhores que os outros. Mas também não fomos piores. A escravatura era praticada em África quando lá chegámos. Juntámos esse comércio humano a outros que fazíamos. Fazíamo-lo em conjunto com poderosos africanos, sobretudo da costa ocidental, que já praticavam ancestralmente a escravatura e seu comércio – e também para longas distâncias, através de mercadores árabes, desde há muitos séculos antes. Esse nosso tráfico transatlântico foi feito com ingleses, franceses, holandeses e espanhóis, servindo o propósito da colonização das Américas. Acabou, em definitivo, no século XIX, com primeiros actos de limitação ou proibição nos finais do século XVIII. O abolicionismo português foi longo, demorando cerca de um século a concretizar-se por inteiro: começou com o Marquês de Pombal no fim do século XVIII e só acabou no final do século XIX pelo último impulso do Marquês de Sá da Bandeira. Teria sido mais rápido se a voz e a inspiração de Sá da Bandeira, notável estadista, tivessem sido seguidas por inteiro mais cedo. A Sociedade Histórica marcou, para breve, quatro conferências com João Pedro Simões Marques, o melhor historiador português neste tema, colaborador também no OBSERVADOR, que realizaremos no Palácio da Independência, já nos próximos meses de Setembro a Novembro: “A origem das coisas” (29 de Setembro); “A lógica das coisas” (13 de Outubro); “O horrível negócio” (27 de Outubro); “O abolicionismo” (10 de Novembro). Continuaremos a intervir neste tema, enquanto considerarmos que há necessidade de informar objectivamente o público e de contrariar a manipulação pelos extremistas retardatários. Por mim, valem sobretudo estes pontos: primeiro, a escravatura é hedionda; segundo, é um facto deplorável da História; terceiro, foi abolida em geral há 150 anos, pelo menos; quarto, é tarde para a abolir (já está!), mas é sempre tempo de combater que possa ressurgir, como sucede nalguns lugares e nalguns tráficos específicos (de mulheres e crianças, nos mais abjectos); quinto, o Ocidente também sujou as mãos na escravatura, mas foi o facto de a escravatura se cruzar e chocar com os valores morais do Ocidente que conduziu, finalmente, à emergência da consciência abolicionista e levou à sua abolição, pela primeira vez em toda a História da Humanidade. É o que temos de assegurar e celebrar. Nunca mais!

4 Já nos Descobrimentos, repudio em absoluto os ataques que são feitos. Creio ser imperioso combatermos a sua difamação, quer em Portugal, quer onde se semeiam pastagens de ignorância pelo mundo fora. Os ataques são filhos da ignorância e da manipulação política interesseira. É grotesco misturar os Descobrimentos com comércios reprováveis ou actos políticos cometidos, com os quais não se concorda. É o mesmo que condenar uma auto-estrada porque por ali entraram e saíram os autores de um acto terrorista, demolir uma ponte porque por ali fugiram raptores de crianças, encerrar um aeródromo porque ali escaparam os assaltantes de um banco.

Os Descobrimentos valem por si mesmo. É um momento fantástico da História da Humanidade, gerador da primeira globalização. Abriram a era moderna através do conhecimento universal. É o maior feito da História de Portugal, sem dúvida. Mas é ainda um momento notável da História da Europa e da História do Mundo, feito por nós.

É muito chocho dizer-se, como por vezes se ouve: “A nós não nos descobriram, pois já estávamos cá.” Claro! É evidente: por aí estarem, descobrimos que estavam aí; e esses também descobriram que existíamos e chegávamos por mar. Todos em todo o mundo tiveram, pela primeira vez, oportunidade de se conhecerem uns aos outros, isto é, descobriram-se. Os Descobrimentos foram um descobrimento dos que não se conheciam mutuamente e das rotas de comunicação marítima transcontinental por todo o globo.

É um feito extraordinário de ciência e técnica náutica, de ousadia, de coragem e de tenacidade, absolutamente notáveis, sobretudo se compararmos os modestos recursos e instrumentos daquela época com os sofisticados e abundantes recursos que usamos, hoje, na conquista do espaço, as novas Descobertas da nossa era.

Se nos lembrarmos de que, nos séculos XV e XVI, em que se concentrou o essencial desse esforço, nós, Portugueses, éramos apenas um milhão, parece irreal que tenhamos estado por todo o lado, em todo o mundo, navegando naquelas pequenas naus, entrando por “mares nunca dantes navegados” e enfrentando perigos enormes. Grande honra, admiração e agradecimento merecem os Portugueses desse tempo e desses feitos. Ninguém, com seriedade, o pode negar.

Os Descobrimentos eram algo que tinha de ser feito. Fomos nós que os fizemos! Fizemo-los a quase todos – e com alguns navegadores de outros países. Não, nada pode explicar que se alveje o Padrão dos Descobrimentos com ódio filho único de preconceito e ignorância.

Entre outras ideias, a Sociedade Histórica tem em preparação um outro ciclo de palestras e debates sobre as 33 figuras representadas no Padrão e cada uma delas. Não são figurantes anónimos de um friso escultórico. São personalidades notáveis da nossa História pátria. É indispensável haver mais instrumentos de conhecimento e divulgação sobre essas 33 figuras, que todos possamos conhecer, assim como a razão por que estão ali. A grande maioria são navegadores notáveis, junto com governantes da época, artistas, escritores, cientistas, religiosos.

Ainda que o Padrão tenha como datas de referência 1940 e 1960, aquilo que é não tem nada com o Estado Novo. É a memória de Portugal desde 1394, ano de nascimento do Infante D. Henrique, sua figura mais proeminente. A homenagem ao feito das Descobertas e a estes portugueses (como a outros da mesma safra) percorre toda a historiografia portuguesa desde o século XV, quadro muito maior e mais amplo que o de qualquer regime. Atravessa toda a monarquia, está bem presente em toda a nossa República e continua nos nossos dias. Vá, atrevam-se a chamar “fascista” a Jaime Cortesão, por exemplo. Atrevam-se a chamar “fascista” a Luís de Camões, nosso poeta maior, ícone da nossa língua, figura central do nosso 10 de Junho, Dia de Portugal e das Comunidades, que nos escreveu:

E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Todos os 33 do Padrão estão entre os aqui apontados por Camões. Sabemos, por isso, ter esse dever na Sociedade Histórica: cantar por toda a parte as obras valorosas desses portugueses que da lei da morte se libertaram.

Lembremos só Fernão de Magalhães, um dos 33 do Padrão, de que estamos ainda a  assinalar o 5.º Centenário da Viagem de Circum-navegação. Quando partiram de Sanlúcar de Barrameda, em 1519, eram cinco naus e 234 pessoas. Quando voltaram, sob o comando de Sebastián Elcano, restavam uma nau e 18 sobreviventes. Uma nau naufragou, duas foram queimadas, outra desertou. Morreram na revolucionária viagem mais de 150 navegantes, incluindo o próprio Magalhães, morto num combate. Quem desdenha deste feito e dos que o fizeram? Quem despreza a coragem, o heroísmo e a ousadia desta viagem, de efeitos profundíssimos no progresso humano? Quem se atreve a conspurcar ou a mutilar monumentos que homenageiam estes feitos?

5 Por isso é precisa a videovigilância. Actos como os de domingo passado não podem repetir-se com a mesma falta de segurança. Em todos os contextos urbanos, só a videovigilância é resposta preventiva eficaz às ameaças que rodeiam o nosso património monumental e histórico. Claro que ajuda não haver políticos irresponsáveis a açular os exibicionistas e os extremistas de turno com o discurso infantil de dar tau-tau na pedra para libertarem os seus ódios. Assim como ajuda que as escolas dos diversos graus ensinem o respeito pela História e pela representação desta no espaço público. Mas, à cautela, ponhamos a estatuária e outros monumentos sob protecção da videovigilância.

É bom sinal a Câmara Municipal de Lisboa ter sido muito rápida na limpeza do Padrão, tal como há um ano fez com o monumento ao Padre António Vieira. É muito bom que todas as autarquias tenham, quanto aos monumentos, esta cultura de prontidão de resposta na reparação. Mas não chega. É preciso trabalhar, ao nível do Governo, para que isto não volte a acontecer. E, quando acontecer, que os autores sejam levados rapidamente a tribunal.

É o que deve acontecer com a vândala de 8 de Agosto: seja qual for a língua em que se exprimir, tem de responder em tribunal pelo crime de dano e pagar todos os custos da reparação.

Espero que a Polícia Judiciária e o Ministério Público façam bem o seu trabalho. E, a seguir, o tribunal. São os delinquentes que têm de pagar. Não nós.