Não me atreveria a repetir o que já muita gente disse – e disse muito bem – sobre a final da Liga dos Campeões em Lisboa e sobre as reacções aos últimos números do coronavírus em Portugal se não fosse por causa de uma questão que desde há algum tempo me ocupa o espírito e à qual voltarei no fim, mas que desde já anuncio: a patente dificuldade que os nossos políticos têm em falar com gravidade das coisas graves.

Comecemos pelo princípio. Num belo fim de tarde de Junho, o Presidente da República juntou à sua volta, nos jardins do Palácio de Belém, o presidente da câmara de Lisboa, Fernando Medina, o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, o primeiro-ministro, António Costa, e o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes. Para quê? Como se sabe, para anunciar ao país que Lisboa receberia, em Agosto, a fase final da Liga dos Campeões. “É uma vitória antecipada de todos os portugueses”, declarou António Costa, sublinhando que “esta organização reforçou o estatuto de Portugal no mundo”, além de ser “um prémio merecido aos profissionais de saúde”. Marcelo Rebelo de Sousa, por sua vez, afirmou que este “caso único e irrepetível” representa uma vitória da “marca Portugal”, uma vitória justificada pela “autoridade moral” de que dispomos, num momento particularmente difícil “em que todos os países disputam o regresso do turismo internacional”. Resumindo: “Os portugueses merecem o que vão ter em Agosto”. Fernando Medina não quis ficar atrás: a realização em Lisboa da fase final da Liga dos Campeões “tem uma importância sem limites”. Nos bastidores, a Direcção Geral da Saúde da Dra. Graça Freitas apoiou entusiasticamente este novo desígnio nacional: Portugal tem “todas as condições” para receber a Liga dos Campeões.

O que este tristíssimo ajuntamento de cinco pessoas revelou sobre o país, para quem andasse distraído, tem, para falar como Fernando Medina, “uma importância sem limites”. Porque mostra até às mais desprevenidas criaturas o vazio exactamente ilimitado que habita colectivamente aqueles cérebros e o tipo de ambição que têm para Portugal. Quem tivesse ainda algum respeito por aquela gente deveria tê-lo perdido por inteiro naquele fim de tarde. Deveria haver limites para o grotesco – mas, pelos vistos, não há. Pode-se falar tranquilamente da “autoridade moral” da “marca Portugal” e de “um prémio merecido aos profissionais de saúde” a propósito da organização da fase final da Liga dos Campeões sem que isso provoque uma gargalhada universal. Os profissionais de saúde, é verdade, não acharam graça nenhuma ao prémio que Costa lhes concedeu, mas logo este, na sua costumeira língua de farrapos, explicou que tais reservas só são possíveis com “muito má-fé” (sic), no que imediatamente foi secundado por Marcelo, como vem sendo hábito. Segundo todas as aparências, como escreveu Francisco Assis no Público, há gente que não distingue as questões que são “do domínio da intendência” daquelas que são “do âmbito da acção de um homem de Estado”. Marcelo e Costa evidentemente não atingem estas subtilezas, que fazem, no fundo, parte do mais elementar bom senso. A especialidade deles é o grotesco desinibido, um desporto que praticam com esmero e dedicação à nossa custa.

Por cima disto, e como que para pôr em cheque a “autoridade moral” da “marca Portugal”, na sua “importância sem limites”, vários países europeus decidiram proibir ou condicionar a entrada de turistas portugueses. Motivo? Os dados assaz pessimistas dos números do nosso combate à pandemia, que se vão tornando cada vez mais notórios, apesar dos diários esforços para disfarçar a coisa da Dra. Graça Freitas, essa “grande protagonista”, para falar como a ministra da Cultura, cuja independência por relação ao governo é nula. O ministro Santos Silva fez conhecer, através de um comunicado do ministério dos Negócios Estrangeiros, a sua indignação patriótica: “Portugal reserva-se o direito de aplicar o princípio da reciprocidade”. Quer dizer: vamos malhar nos estrangeiros, como ele gosta. António Costa, por sua vez, absteve-se de censurar os novos “repugnantes”, limitando-se a lembrar que não “estamos a trabalhar para a fotografia”. Há sem dúvida uma explicação para tal à-vontade: somos naturalmente fotogénicos, tal o reforçado “estatuto de Portugal no mundo”, ou, nas palavras de Marcelo, a “autoridade moral” da “marca Portugal”. Quem precisa, com tais predicados, de “trabalhar para a fotografia”? Deixemos isso para os bárbaros europeus, “repugnantes” e neo-repugnantes. De resto, a UEFA já escolheu o nosso país para organizar a fase final da Liga dos Campeões, lembrou Costa. Não diz isso tudo o que é preciso, ou mais do que é preciso, acerca da nossa “importância sem limites”, para falar de novo como Fernando Medina?

Tudo isto conduz a duas reflexões, uma óbvia e a outra, talvez, menos óbvia. A óbvia, que já mencionei, é o grotesco inconsciente desta gente, gente que, colectiva e individualmente, é capaz de magnificar, numa linguagem abjecta e com pompa e circunstância, aquilo que releva, na melhor das hipóteses, da eficácia de um expediente. A falta de vergonha necessária para isto raia o infinito. A reflexão menos óbvia, que anunciei no início, tem a ver com a incapacidade de comunicar com gravidade a grave situação que vivemos. Há oscilações entre a jocosidade e a pomposidade, que por vezes nos fazem suspeitar algum cinismo, mas nada de remotamente semelhante à gravidade que em certas circunstâncias é o único modo conveniente para comunicar a verdade. O último político em Portugal a falar com gravidade da nossa condição foi Pedro Passos Coelho. A gravidade permite que a preocupação com o bem comum ressoe nas mentes individuais e as disponha a alguma acção. O contrário, portanto, daquilo que conduz a uma cidadania inerme e anestesiada, que apenas beneficia quem tem por único objectivo a sua perpetuação no poder, custe o que custar. Passos Coelho falava para os portugueses e, com uma calma que transcendia os limites da imaginação, sabia fazer-se ouvir. O que esta presente gente que nos pastoreia faz é tudo menos comunicar ao país, honestamente, a sua situação. Para ressoar na cabeça dos outros é preciso que algo ressoe na cabeça do próprio. E como nada ressoa naquelas cabeças, tudo o que se ouve é apenas ruído, só ruído, sem informação em que possamos confiar. Conseguirmos sobreviver com Marcelo e Costa, mais as suas “autoridade moral” e “marca Portugal”, é talvez o único efectivo e verdadeiro “milagre português”.

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