A imprensa portuguesa é muito generosa: só assim se explica que, contra toda a evidência, tivesse dedicado um fim de semana inteiro à procura de “moderação” e “maturidade” no congresso do Bloco de Esquerda, tal como, no Verão, houve quem encontrasse “empreendedorismo” no caso Robles. Como explicar tanta boa vontade?

O equívoco tem talvez esta razão de ser: durante anos, o Bloco serviu aos jornalistas uma dieta infatigável de citações contra o Partido Socialista, a União Europeia, o euro, e os compromissos financeiros do país: o PS só tinha “políticas de direita”, a UE era neo-liberal, o euro servia apenas para sufocar Portugal, e a dívida pública devia ser “reestruturada”, isto é, renegada.

Acontece que, desde 2015, o BE vota os orçamentos do PS, como parte da chamada “geringonça”. Em conformidade, temos ouvido menos sobre as “políticas de direita” socialistas, a saída do euro ou a reestruturação da dívida. O que não quer dizer que não tenhamos ouvido alguma coisa, e que sempre que ouvimos, nada tenha mudado, nem sequer acerca do PS, cujos orçamentos, segundo descobrimos agora, o BE só vota porque entretanto terá “derrotado” o “programa de Mário Centeno”. Mas noutras coisas, sim, o BE está mais contido: por exemplo, no que diz respeito a “corrupção” e irregularidades, assuntos sobre o quais costumava ser o primeiro a aparecer aos gritos nos jornais. Agora, sobre Tancos, não quer “ruído“. É verdade: Francisco Louçã falou de “corrupção”, mas a “corrupção” que o incomoda é, muito convenientemente, a dos “submarinos” e dos “vistos Gold”, não a da Operação Marquês.

É esta táctica que a imprensa tem confundido com uma mudança de valores. O Bloco acha que o PS é um partido verdadeiramente de esquerda? Não acha. O Bloco pensa que a integração monetária é o quadro mais adequado para desenvolver a economia portuguesa? Não pensa. Mas o Bloco, por causa do susto de 2011 e da viragem do PCP em 2015, teve de trocar a sua intransigência ritual por esta “disponibilidade para ir para o governo” – um pé no poder, mesmo que torcido. Nada disto é “moderação”, no sentido de aceitação dos princípios da democracia representativa, da economia de mercado ou da integração europeia. É apenas conformismo táctico de um partido que não está, neste momento, em situação de fazer política com base na contestação frontal desses princípios.

Dir-me-ão: que importa isso, se depois o Bloco aprova os défices exigidos por Bruxelas? Importa porque o Bloco precisa de provar que os seus  votos orçamentais não podem ser substituídos por votos socialistas. E não basta aos bloquistas, naturalmente, dizer que a diferença está em mais uns euros nos salários do funcionalismo. A diferença tem de ser dramática, e viu-se em que consiste: aproveitar os “populismos” para demonizarem toda a direita e promoverem-se a si próprios como os porteiros encarregados de manter a direita de fora. No Portugal venezuelano dos bloquistas, a direita não tem lugar: “não conta para o futuro do país”. É apenas um bando de “rufias” contra os quais o Bloco se propõe erguer uma “barreira de aço”. A linguagem é significativamente soviética: tal como na URSS de Lenine, Trotsky e Estaline, os que não alinham são “rufias” (“elementos anti-sociais”). O “aço” é outra imagem desse mundo: também aparecia, por isso, na cantiga gonçalvista do Verão de 1975 (“Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço”). O PS sozinho, claro, não é de confiança enquanto “barreira de aço”. Só o Bloco pode garantir que os “rufias” não “contam”.

Não, o Bloco não está mais moderado: está até muito mais radical na rejeição do pluralismo político. Antes, atacava as “políticas de direita”. Agora, ataca a ideia de que possa haver uma “direita”. Como é óbvio, o Bloco não tem poder, por si só, para inocular a política portuguesa com este ódio de guerra civil. Tudo depende do PS. Vão os socialistas também começar a ver só “rufias” à sua direita? Em 1975, o PS de Mário Soares recusou alinhar na caça às bruxas. E hoje, que fará o PS de António Costa?

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