O acontecimento recente do nascimento duma criança com malformação grave não diagnosticada durante o acompanhamento médico da gravidez da mãe indignou o País, suscitou atribulação na Ordem dos Médicos e foi um golpe na confiança dos cidadãos nos serviços de Saúde e na Medicina.

O que terá falhado? Incúria profissional que potenciou erro diagnóstico? Incumprimento das normas de execução correcta e boa prática médica indispensáveis em exame de ecografia morfológica fetal, mais até do que incumprimento do tempo alocado? Verificou-se o registo das imagens?

Todas estas questões, e outras eventualmente bem mais do foro da especialidade médica em causa, suscitaram a necessidade de uma reflexão sobre o dever de competência, que é um valor indeclinável da nossa profissão, uma obrigação individual de cada um na fidelidade ao Juramento público que marcou a admissão na Profissão, mas também uma necessidade institucional de assegurar a sua garantia objectiva.

Tem uma dupla dimensão. Individual e da Profissão, que através da sua Ordem sanciona os programas de formação, avaliza a sua qualidade e garante a capacidade profissional para o exercício autónomo. Na verdade, a responsabilidade do acto médico tem, em primeiro lugar, uma profunda dimensão individual que se consubstancia na singularidade de cada doente em que se concretiza a nossa missão: prevenir a doença, curar se possível, aliviar o sofrimento e prolongar a vida com qualidade. Para cada médico individualmente a exigência e o dever de fazer bem são obrigação indeclinável.

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Primum non nocere, ou seja, evitar fazer mal, como se repete à exaustão no cânone da Profissão. Pressupõe dedicação, profissionalismo e respeito pelo outro, seja adulto, criança ou ainda feto no útero materno. É por isso que a profissão é tão exigente – e é preciso que o seja, como escreveu o meu Mestre – e a negligência configura um acto deplorável que mancha não apenas quem a praticou, como é uma traição à própria essência da Profissão.

Em segundo lugar, tem uma dimensão institucional que é o seu garante público.

A competência médica é um longo processo e difícil. Tudo começa na Universidade com a obtenção do Diploma do Curso, continua-se na pós-graduação que conduz em regra à especialização e que é responsabilidade das instituições de Saúde, hospitalares e ambulatórias, que proporcionam o treino profissional e é ratificada pela titulação dada pela Ordem dos Médicos. E por fim, tem uma nova etapa, a aprendizagem permanente ou Educação Médica Continuada que se continua pela vida profissional e é indispensável para acompanhar o progresso do conhecimento médico, incorporar inovação e saber aplicá-la na prática.

É, portanto, uma responsabilidade tripartida. Primeiro, individual, depois da Ordem dos Médicos a quem o Estado atribuiu a missão de auto-regulação da Profissão, e finalmente das entidades empregadoras, públicas ou privadas, porque a Medicina é cada vez mais científica e complexa e é dependente de meios tecnológicos que são indispensáveis. Por isso se torna imperioso assegurar a ecologia indispensável à boa prática médica, seja qual for o seu modelo organizativo, público, privado, individual ou institucional e, isso é também, missão das autoridades reguladoras.

Na nossa tradição o escrutínio da qualidade profissional tem sido assegurado pelos sucessivos concursos da carreira, da qualificação ao provimento, e também para a progressão profissional do médico. Tem sido, e assim deve continuar, como missão dos Pares através da Ordem e seus Colégios de Especialidade, pautado por critérios de exigência, qualidade e mérito, excluindo favoritismos e complacência.

Mas será este mecanismo suficiente?

Este tema tem sido objeto de alguma discussão, mas não teve ainda a resposta que considero adequada. Há uma lacuna. Como assegurar qualidade e competência no período de exercício profissional que decorre após terminados todos os concursos e que habitualmente corresponde a duas ou três décadas de prática com autonomia profissional e maturidade expectáveis? Será uma necessidade? E como fazê-lo?

Noutros países europeus e nos Estados Unidos onde existem igualmente carreiras, exames exigentes de titulação profissional, concursos para cargos de chefia e posições de responsabilidade, recorre-se a mecanismos adicionais de confirmação periódica da competência para o exercício da Profissão: configuram o que foi designado por Recertificação Profissional, que em muitas latitudes é indispensável à continuidade da actividade.

Este processo foi sempre estranho à nossa cultura e organização. Apela à mesma responsabilidade. Pessoal, de empenhamento individual para a aquisição do conhecimento e desenvolvimento das capacidades que permitem actualização profissional face ao progresso contínuo e inovação em Medicina. Depois, das organizações empregadoras, as quais têm o ónus de reconhecer essa necessidade e proporcionar oportunidades e meios para a sua concretização.

Por fim, das instituições representativas da Profissão, colégios especializados e sociedades científicas, que devem articular-se para a definição de objetivos programáticos em cada área de intervenção, definindo e estruturando competências, sub-especializações e certificar a qualidade das acções formativas.

Há anos esta perspectiva integrou o programa de acção do anterior Bastonário, o que me aproximou da sua intervenção e me levou a colaborar. Não conseguimos, efetivamente, a sua implementação e, obviamente, não vou eximir-me à minha parcela de responsabilidade na falência do exercício. Também não serve de consolo que outros, anteriormente, também tivessem alertado, escrito e tentado.

Não é fácil, exige capacidade para introduzir mudanças profundas na filosofia e na acção. Desde a intocabilidade da organização das carreiras e dos seus concursos, infelizmente demasiado paroquiais, pouco competitivos e onde todos tendem a ser excelentes: nota inferior a 19 valores é desconsideração ao candidato e à instituição donde provém.

O sistema a ser implementado terá de mobilizar os colégios de especialidade, as entidades formativas, desde as escolas médicas, às sociedades científicas e associações profissionais e pressupõe capacidade e isenção para avaliar, reconhecer e creditar qualidade. Noutra perspectiva, o processo tem que ser user-friendly, pouco burocrático, para cativar o empenhamento dos profissionais.

Basear-se-á no registo pessoal e institucional da atividade individual, clínica, cirúrgica, científica e académica, o que pressupõe alguns requisitos: informatização, compatibilidade entre programas e instituições, frequência comprovada de acções de formação com certificação de qualidade. Deverá ter uma validade temporal de 10 anos.

Em Portugal, um sistema autónomo e objetivo de certificação de qualidade das acções formativas não existe, nem se vislumbra quem o possa fazer com eficiência e rapidez. Mas até poderia ser importado e incorporado. De facto, as instituições europeias como a UEMS – União Europeia dos Médicos Especialistas – têm um sistema de avaliação e creditação, bem como instituições científicas e profissionais na Europa e EUA.

A informatização que permitiria rapidamente obter, tratar e confirmar a informação, só agora se tornou obrigatória e mais eficiente, embora continue muito burocrática e mais orientada para a dimensão administrativa do que para a clínica e com numerosas limitações nas nossas instituições, hospitalares e ambulatórias.

Parece-me ser necessário, urgente e indispensável a implementação dum sistema de Recertificação Profissional. O conhecimento médico está em desenvolvimento contínuo, a inovação desafia actuações estabelecidas e requer capacidade e espírito crítico para a sua incorporação e a exigência dos Cidadãos e da Sociedade é, felizmente, muito maior.

Um programa de Recrtificação Profissional não se sobrepõe nem desvaloriza os concursos da carreira profissional; pelo contrário, é complementar. Infelizmente não foi, nestes anos recentes, preocupação dominante nem prioridade assumida pela Ordem dos Médicos.

Ter-se-ia evitado o problema? Provavelmente não, até porque este parece configurar uma falência múltipla, desde incúria individual e repetida, à institucional, isto é, a quem compete monitorizar e assegurar qualidade.

Mas a Sociedade portuguesa não é pró-activa nem dinâmica, não antecipa problemas para procurar, através de medidas adequadas, reduzir-lhes dimensão ou preveni-los. O que se passou com a falência de serviços de urgência recentemente é bem a expressão da complacência reinante, e não só na Saúde. Veja-se o problema das Escolas, desde as instalações à falta de pessoal que as televisões todos os dias mostram nas notícias da manhã!

Seria um programa de Recertificação útil e eficaz? Os argumentos contrários à sua implementação eram conhecidos e expectáveis: pouco impacto prático, mais serviços e custos, implementação difícil pela indiferença dos profissionais assoberbados com problemas mais prementes, desvalorização dos concursos existentes, perda simbólica da autonomia do médico, etc. Não se perceberam duas coisas. A primeira, é que a simples obrigação de registar a atividade realizada e de prestar contas, induziria reflexão crítica, reforçaria sentido de responsabilidade e obrigação para a actualização permanente. É sempre o grande motor do progresso individual e diminui complacência. A segunda, é que a Profissão dava um sinal público de empenhamento e responsabilidade e tornava o seu dever de competência uma prioridade que as instituições empregadoras e reguladoras teriam que assumir também.

O caso presente não dispensará, obviamente, o apuramento de todas as responsabilidades profissionais e/ou criminais e actuação firme no respeito pelo Direito e pela Ética. Mas impõe o dever de reflexão e de acção.

A resposta recentemente anunciada foi a criação eventual de novos cargos que sirvam de mediação entre os cidadãos e as Instituições representativas dos médicos, a que se associou o arranjo doméstico há muito requerido. Útil e suficiente? Talvez, mas corre o risco de ser mais um elo na burocracia. Mas a minha convicção é clara: sem mudarmos o paradigma que estimula e confirma o nosso dever individual de competência e continuarmos a adiar a implementação de um sistema de Recertificação da Competência Profissional, não ultrapassaremos este cabo das tormentas.

Solidariedade com as crianças que foram afectadas e as suas Famílias, penalização devida e aplicada com rigor e justiça a quem prevaricou e acção coerente e compromisso público para melhorar todo o Sistema e reduzir o risco do Erro Médico, são obrigação e dever indeclináveis depois de uma tragédia como a presente.

Cada caso como este é também uma ferida na credibilidade da Profissão e na confiança dos cidadãos na Medicina e nos médicos. Nestas ocasiões quero acreditar que o peso individual do erro cometido será insuportável para quem o cometeu, mas é fundamental que a sua repercussão na Profissão sirva para dinamizar o impulso reformador e mudar o que for necessário com determinação, serenidade, eficácia e respeito. Por isso relembro o poema de John Donne que Hemingway recuperou na sua obra-prima “Por Quem os Sinos Dobram”:

No man is an island…every man is a part of the continent, a part of the main…. I am involved in Mankind;

And therefore, never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.