As últimas semanas foram verdadeiramente misteriosas na política portuguesa. Há muito tempo que não tinha esta sensação de que há algo que, claramente, está a ser escondido dos eleitores e que, quando for óbvio o que se passa, teremos uma surpresa desagradável. Posso estar enganado, e, nesse caso, aqui estarei dentro de uns meses para o reconhecer, mas os sinais que chegam não são tranquilizadores.

António Costa apresentou, finalmente, o pacote do governo para ajudar as famílias a lidar com os efeitos da inflação no seu rendimento. O programa – intitulado ‘Famílias Primeiro’ — contém um sem número de medidas importantes, as quais, em muitos casos, apontam na direcção correcta. No entanto, o programa padece um problema central, do qual já falei, de resto, no último Fora do Baralho. António Costa fala de solidariedade intergeracional. Esta, no entanto, parece ir apenas num único sentido: dos mais jovens para os mais velhos. É tempo de desmistificar a ideia de que os idosos e reformados são todos pobres e desvalidos. Há, certamente, muitos idosos que são pobres e vivem com dificuldades. No entanto, não é por o serem que entram automaticamente nesta categoria. Existem reformados que têm rendimentos e vidas que, felizmente, estão bem acima do salário médio.

Na verdade, segundo dados do Eurostat, em 2020, o rendimento mediano de um idoso (adulto com mais de 65 anos) em Portugal era de 10.067 euros por ano, enquanto o rendimento mediano de um português adulto entre os 18-64 anos era de 11.151 euros por ano. Como podemos ver, há ricos e pobres reformados, ricos e pobres trabalhadores no activo.

Sejamos claros. Há uma crise difícil para enfrentar e o governo não tem, naturalmente, capacidade de acudir a toda a gente. Tem de fazer escolhas, muitas delas difíceis. A questão deveria ser posta de forma clara e transparente aos Portugueses. Na situação actual, não podemos cumprir a promessa e a lei de actualizar as pensões em linha com a inflação. De resto, essa lei foi feita numa conjuntura durante a qual se pensava que a inflação alta era algo do passado. O espírito da lei foi pensado para um mundo que já não existe. Assim, António Costa teria de assumir o ónus político de não aumentar, nem dar qualquer benefício, os pensionistas que ganham acima da média. Em contrapartida, o dinheiro que pouparia poderia ser utilizado para acudir a famílias mais pobres que estão no activo. Com que cara é que um primeiro-ministro consegue dizer, com seriedade, que tem de aumentar, de forma permanente, um reformado com uma pensão de 3000 Euros por mês e dar um simples cheque de 125 euros a um trabalhador no activo?

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O motivo é simples. António Costa aprendeu a lição com Passos Coelho. Aconteça o que acontecer, existem grupos sociais que são intocáveis. De resto, o mínimo de análise séria, mostrar-nos-á que associações como a APRe criadas nos míticos tempos da troika são organizações de reformados de classe média-alta que são peões políticos num tabuleiro bem maior. Não é por acaso, de resto, que os pensionistas desertaram quase completamente do PSD e estão hoje entre o eleitorado mais fiel do PS. Na ciência política temos um termo para isto: clientelismo. Um partido distribuir benefícios direccionados a grupos sociais, esperando receber em retorno compensações eleitorais.

O mais interessante de tudo isto tem sido a ligação feita entre o plano de apoio às famílias num contexto de inflação e a reforma da segurança social. Aparentemente, de repente, o governo percebeu que, se nada fizer, muito em breve os problemas da segurança social tornar-se-ão insustentáveis. Fiquei muito surpreendido quando, no meio de um debate sobre apoios às famílias no meio da crise actual, começamos todos a debater o futuro da segurança social. Costa terá aproveitado para, em mais uma jogada genial, resolver parcialmente o problema da segurança social graças à questão da inflação sem assumir o ónus político dessa medida, graças, infelizmente, à iliteracia financeira de grande parte da população.

Isto tem, no mínimo, dois problemas. Em primeiro lugar, o problema da segurança social, com todas as suas ramificações e complexidades, não se apresenta no meio de medidas temporárias de redução do preço dos combustíveis e das botijas de gás, no contexto de um pacto intitulado Famílias Primeiras. Em segundo lugar, o que teria Costa feito na ausência da actual crise inflaccionária? Caminharíamos alegremente para o desastre na segurança social? Como é que vão ficar os mais jovens que são chamados a pagar uma carga fiscal altíssima para garantir que tudo fica na mesma no outro lado da pirâmide demográfica? Podemos confiar no Estado como pessoa de bem para garantir que, quando chegar a nossa vez, teremos reformas? Como é que podemos confiar num sistema público de pensões que vive, literalmente, à custa de enxertos, com reformas feitas entre explicações pouco claras e negando a evidência dos cortes? Termino como comecei. Tudo isto soa demasiado bizarro e contém demasiada desinformação para o meu gosto. Um governo claro esclareceria exactamente o que propõe para a segurança social.